Para
nada além do tempo, eu acordo de manhã apenas pelo raiar do dia e não sei se
ainda estou vivo. Olhando para o espelho, meus olhos não sabem o que dizer:
estes olhos que nunca aprenderam a ver, pois quando percebi que a vida é um
sonho de verdade, eu esperei por uma visão e procurei por um sinal, mas eu simplesmente
não conseguia encontrar uma razão para continuar aqui. Em um vasto mundo que me
esperava, eu não sei o que me fez voltar, por que eu pensava que o jogo estava
ganho, mas o segredo que eu guardava acabou sendo exposto para todos. Eu estava
perdido em um universo interior que se refletia na realidade, e de repente
todas as minhas falhas vieram à tona... eu disse adeus a todos os meus dias felizes, por que eu nunca tive
muitos, mas eu dei tudo o que eu tinha. Não tinha ninguém para culpar, o mundo
inteiro havia desaparecido, e os faróis não paravam ao meu aceno. Agora eu
encontrei meu caminho de volta para casa, e esta casa é você – a nossa ligação
eterna abriu os limites do céu, abalando os anjos preguiçosos como os cachorros
que latiam por onde eu andava, como se eles quisessem me dizer alguma coisa,
mas eu não compreendia as palavras do divino. Foi preciso mais do que o clamor
de todos para que eu fosse salvo, desde que você teve aquele misterioso sonho
em que eu estava acorrentado e cuspia sangue quando tentava falar. Ali eu entendi
que precisava renunciar o que havia nascido há dez anos atrás: as quatro
sombras que me acorrentavam na depressão, insatisfação e morte. Para isso, eu
deixei que você cuidasse da minha essência superior dentro do nosso filho
astral, pois ela já não podia sobreviver dentro de um corpo habitado por
demônios. Se você soubesse a verdade antes, não teria insistido para que eu
ficasse com ele, pois eu estava apenas livrando-o do sofrimento. Enquanto isso,
a centelha do amor despertou as habilidades da escrita mágica que estavam
adormecidas dentro de você, dando-te a autoridade de Deus para que tu nunca
mais duvidasse da sua existência. Aos poucos tua essência divina está
despertando, por que agora você enxerga sua própria mudança como uma luz que se
espalha por suas palavras e ações. No entanto, parte das tuas inseguranças
ainda precisam ser superadas com a plenitude do amor próprio, por que de nada
vale evoluir sem amar tua própria imagem e semelhança com Deus. Isso pode levar
algum tempo, mas eu estarei sempre aqui, elogiando as silhuetas da tua
beleza noturna, ouvindo suas risadas ecoando na minha cabeça e acreditando em
nossos planos futuros, embora eu prefira viver o presente como se não houvesse
amanhã. Mas entre nossas diferenças existe uma palavra secreta que não existe
nos dicionários, por que é a palavra do mistério do amor, do qual eu pude
sentir no beijo que demos em nosso amado filho, quando parte da sua energia me
foi passada para enviar estas palavras até você. O tempo passa tão devagar
quando você não está aqui, mas eu não tenho medo de andar debaixo das escadas –
a vida é o único segundo da eternidade, e nós devemos sempre repetir o primeiro
e último refrão, onde está a razão e a rima, antes de escapar o último suspiro.
Cercado
por mentes modernas é sempre difícil falar quando todos estão online, pois eu me
sinto sozinho entre centenas de amigos. Quanto mais sincronizados, mais
elegantes eles parecem, até que suas imagens estejam completamente alinhadas. A
partir daqui, eu os observo como um telespectador da vida, sem entender o que
os faz permanecer neste vicio de competir pela máscara mais bonita. Quando eu
finalmente arranquei minha face da mentira, pude ver que a melhor maneira de
dar e receber é sendo menor do que eu era, por que antes eu estava enterrado na
areia e na argila, enlutado em um vazio dentro de outro. Mas além do abismo, eu
amo a beleza, além da mente, eu tenho um coração, além da desilusão, eu obtive a
clareza – agora o pêndulo está reverso, os rios vermelhos e os céus pretos, em
um solo derramado de sangue. Tirar o véu não significa ver as maravilhas da
realidade, mas a sujeira que se esconde por trás dela. Não foi o mesmo que
aconteceu quando arranquei o véu da minha noiva? Ela era uma paisagem fria e
desolada, esmagando-me com palavras de bondade para que eu não visse sua
maldade. Rendida pelo meu desprezo superficial, ela se afogava em suas próprias
lágrimas amargas, enquanto eu a julgava pela autoridade da alma assassina, acreditando
que um dia eu formaria a perfeita aurora e quintessência diante de nós. Mas
como eu poderia transformar alguém, sem antes transformar a mim mesmo? Agora eu
sou um homem sem identidade, vagando rumo ao desconhecido como um suicida sem corda
para se enforcar, por que os propósitos divinos já não fazem mais parte da
minha carne impura. O pecado não pesa minha consciência, a desarmonia não é
desconfortante, a tentação não envenena minha alma. Estou vibrando na borda
negra da atmosfera como um medo profundo que penetra a terra, a escura água do
senhor adormecido se move no meu interior: esperando pela recompensa material,
eu abaixo minhas mãos ao invés de erguê-las aos céus. Pois na soberania do meu
fortalecimento, eu não posso negar o animal da minha natureza, considerando que
todas as maldições foram destruídas! Que alto preço, não é mesmo, minha
preciosa companheira? Quando tu estavas aqui, eu podia conter o fogo do orgasmo
infernal, mas desde a sua partida eu me tornei um oráculo sem olhos. Guiado pela
música satânica que favorece o teu dom, eu perambulo sozinho e livre neste
outono de luz opaca, sem aquela que me fazia ter noites serenas com sua beleza
estonteante e negra. Sua voz ainda caminha pelos poros do meu corpo como um
coro de sereias harmoniosas, fazendo-me relembrar de quando sua presença me
fazia se sentir o homem mais feliz do mundo, pois ela tinha todas as
qualidades que eu buscava em uma amada. Ninguém é como ela, ninguém nunca
poderá ser, pois antes que eu pudesse transformá-la, ela já era a minha
perfeição, minha alma-gêmea, aquilo pelo qual eu ansiava despertar dentro de
mim. O temor do meu reflexo me fazia desviar o olhar, mas agora eu sei que a
alma assassina está segura em seu ventre para se manifestar no tempo da
alvorada. A tempestade está se formando, enquanto a doença se espalha pelo
mundo, mas nós devemos sobreviver para presenciar o grande epílogo – as
palavras e os símbolos do homem são apenas promessas vazias que encobrem a
verdade. Óh, minha noiva, não retenha o ar da sua última respiração, pois no fim nós
caminharemos juntos pelo brilho da nova luz... entre nós ele nascerá, regozijando o
prazer do amor, conforme a trindade é negada.
A
chuva está caindo rápido e borrando minha visão adiante, mas de longe eu posso
ver no escuro uma criança aos prantos. Suas lágrimas serpenteiam pelo corpo
despido, carregando suas mentiras em uma sacola de vidro, enquanto uma nuvem
pesada a persegue e obscurece seus pensamentos. Através da fumaça e do vapor que
lambe o céu, o som das águas abafam seus gritos, os cães dividem o lixo com uma
mendiga de espírito, latindo contra sua avareza, pois até a sujeira ela guarda
como porcos se banhando na lama. Mas diante dos outros, ela veste os trajes
mais ricos e o tamanco mais caro, dando passos largos como uma prostituta de
luxo, embora por trás das cortinas ela esconda seus dentes de vampiro,
esperando pela próxima vítima, pois dos outros ela suga o que não é encontrado
em si mesma. Pobre alma, acobertada por uma falsa esperança, a insanidade a
mantém longe do núcleo da responsabilidade, pois seu tempo está programado para
terminar em sofrimento. Sua ferida infantil está sempre aberta para que suas
morais não se dissolvam em piedade, embora a obrigação de provar para si mesma
não esteja sobre seus ombros. Com tantos finais estéreis, ela escolheu o
caminho do diabo – agora o sol nunca beijará sua face com sua luz flamejante,
pois ela reside nas sombras e dorme lado a lado com a morte. Ainda assim, num
desejo negro, eu abracei esta prostituta, dando a ela uma saída de uma vida
indigna, por que com a aparência de um anjo, eu sirvo a escuridão, naquele
abismo sem forma do qual fui feito. Sozinho e com medo, eu enfrento essa
aversão, pois como presságios agonizantes, eu me tornei o reflexo das suas
verdades imaginárias. Você é um pedaço desprezível da existência, e eu prefiro
me afastar das coisas sagradas do que continuar sendo um ícone de luz para
você, pois diabolicamente eu me disfarço em um corpo celestial: como a imagem
do homem deveria ser? Não é com deus quem você está falando, eu não sou nenhum
impostor escondido atrás de paredes padronizadas, mas eu tentei te guiar além
da sua imaginação grotesca, antes que meu nome fosse revelado... pois agora eu
sou a fantasia escondida, no segredo do meu conhecimento, não há mais nenhum
deus comigo! Desde que ela partiu, minha alma divina, eu jamais serei o mesmo
homem que você conheceu, pois agora as quatro sombras me guiam, e cada decisão
é quíntupla, sim... eu alcancei a quintessência! Não há nenhum enigma
manipulado, eu percebo a escuridão como um despertar sinistro, enquanto minha
devoção se esforça para não sentir nenhuma vergonha ou remorso, até que eu
possa satisfazer meu destino por completo. A minha verdade é muito maior do que
sua mentira fabricada, pois como eu poderia continuar ao seu lado sabendo que
tudo não passa de uma ilusão visceral? Eu estou em um momento de graça demoníaca,
e tudo que eu exigi de você foram verdades da alma, mas em poucos dias você conseguiu
mentir mais do que em meses inteiros. Com um estalar de dedos, eu coloquei um
anel astral no seu dedo para cortá-lo em seguida... você foi minha
primeira noiva, mas também a última.
Quando
as nuvens do céu param de vagar é possível ver um apetite se alimentando das
estrelas, ligando ligeiramente a luz do mundo, para me iluminar diante do cosmos.
Seus olhos me encaram calmamente, rasgando vertentes da galáxia como um rastro
de relâmpago vagando pelo universo. Desbotando a luz das estrelas, eu sou
desvanecido pela sua presença, enquanto seu amor me preenche por inteiro. Eu
aperto os dentes mais forte do que minhas mandíbulas aguentam, sentindo o sabor
do sangue escorrendo, deslizando quente por minha pele com uma cor desconhecida
– é um sabor doce, um cheiro agradável, um rio branco que serpenteia pelo meu
corpo. Estou sentindo, quente e brilhante, os pensamentos chegando, pois a voz
do divino é ouvida pelo espírito. Uma grande energia me arrebata, fazendo meus
braços e pernas dançarem involuntariamente, os dedos do oculto me movem sob a
presença do sobrenatural. Deus está aqui, e nem com todas as palavras do mundo
eu poderia descrevê-lo, pois a única centelha de entendimento é a do
autoconhecimento. O silêncio permanece como uma sombra fiel, seus olhos vagando
como um suporte de aquecimento, flutuando pelo rio sombreado da minha carne, embora
seu alvo seja outro coração. Sem nenhum gesto, eu caio em sono profundo e meu
espírito é puxado por mãos invisíveis. Já não mais eu, mas o espírito que
habita em mim, e este espírito é deus. Estou sendo levado até um lugar
distante, ainda sobre a terra, para assistir a trajetória de uma garota fora do
espaço e do tempo. Como um pedaço de metal pontiagudo furando sua inocência,
ela conhece o amor, mas este logo é esmagado pelo elo paterno. Procurando pelo
amor fora de casa, tudo que ela encontra são traições e prisões familiares, pois
a humilhação que a cerca é sua única armadura. Beijos sem sabor, olhares sem
vida, toques frios como a morte, quem poderia imaginar que atrás da sua pele
escura existia um ser indiferente nascendo, e sua risada diabólica era ouvida à
distância. Para se distrair das vozes na sua cabeça, foram necessários muitos
alucinógenos, mas nem a morte era capaz de assassinar aquele ser obscurial!
Sucumbindo como uma maçã podre, ela permitia que o amor a mordesse,
envenenando-o com sua própria personalidade suja, pois atrás das cortinas ela
descontava seu ódio em homens incautos, e entre estes homens estava eu. A cada vítima
seu demônio interior crescia, dominante e repugnante, esculpindo uma nova forma
que se enraizava nas suas veias como galhos tentando atravessar uma pedra. Não
demorou muito para que meu eu inferior a abandonasse, pois a mentira era seu
prazer, e sua voz doce era como o cântico de um anjo caído. Nos dias seguintes,
eu fui consolado por mulheres estrangeiras, mas nenhuma poderia preencher o
buraco que você cavou, sangrando com suas memórias ilusórias, enquanto eu
vomitava toda escuridão transmitida pelo seu falso amor. A mão da morte pesava
como mundos inteiros enfileirados, puxando-me por uma corrente sinistra para o inferno,
porém a depressão nunca mais foi párea contra meu eu superior: aquele que
decidiria te salvar do suplício eterno, pois assustada como um infeliz, você me
avistou voando no céu, mas estava vendo deus. A alma que assassinaria seu
demônio interno, que atravessaria seu corpo para limpar sua escuridão, estava
ali, dando-lhe outra chance de recomeçar. Mas não seria fácil matar um ser que
foi alimentando durante anos, que criou raízes profundas na sua alma. Portanto,
as asas que viu são asas de emancipação, pois só evoluindo é que se desperta a
essência superior. Se realmente sou tua alma gêmea, então terás que ser infinita
como uma flor de lótus, ascendente como o sol, verdadeira como a luz que transcende
o mundo. Agora que sabes de onde vem e a quem pertence esta luz, vende os teus
sonhos para as estrelas, até que as folhas se tornem vermelhas, por que sempre
que curvar a cabeça para o lado, verás uma sombra te encarando, esperando pela oportunidade de resgatar o que lhe foi dado por direito.
Através dos
seus olhos, você enxerga os outros como sanguessugas covardes, mas quando se
olha no espelho, você vê apenas um pedaço de vergonha, sem perceber quando suas
mentiras se voltam contra si mesma. Nesse buraco apertado, sua sujeira e suas
cicatrizes continuam se abrindo, rasgando sua pele e arrancando sua casca, para
mostrar a verdade por trás da sua máscara. Que belo disfarce, não é mesmo? Pele
branca como algodão, cabelo rosa como um céu de sonhos lúcidos, roupas luxuosas
para atrair interesseiros, fotografias de viagens que você sempre desejou ir.
Esta é a imagem perfeita para o mundo, mas e quanto à imagem que você tem de si
mesma? Na sua cabeça, você acha que o que importa é a beleza exterior? Que a
riqueza te faria ser uma pessoa melhor? Pois bem, não se preocupe, nossa viagem
está apenas começando, por que hoje toda podridão que existe dentro de você
será cuspida para fora e toda mentira escorrida como sangue menstrual. Sua
mente está doente, seu corpo impuro, suas vontades instáveis, seus ideais
corrompidos. Quem a transformou nessa máquina de sonhos irreais que a fazem se
sentir satisfeita sendo quem não é? Por acaso, mostrando-se ser alguém
importante, torna você importante? Mostrando-se bela, te faz bela? Mostrando-se
rica, aumenta os números da sua conta bancária? Tudo isso é um mundo de mentira
dentro da sua cabeça, e eu te digo que a pior prisão que existe é a prisão
mental. Enquanto isso, amigos perdidos e vazios te enchem de elogios, trazendo fumaças
viciantes para te fazer perder a noção da realidade, afastando você das
circunstâncias de um mundo frio e sem valor. Mas o tempo é seu inimigo, ele não
tem piedade de quem despreza a vida, pois a natureza é muda para o hipócrita. Por
que vive em segredo, dentro de si mesma, mergulhada em um buraco negro,
escondendo-se atrás do armário, quando pode abrir todas as janelas e ter
orgulho de quem você é? Você é uma advogada incrível, uma amiga que realmente
se preocupa com os amigos, que luta pelo seu amado até quando é
ignorada. Seus cabelos cacheados brilham em destaque, sua pele desnuda lembra a
cor do pecado, sua voz impede que a tempestade venha. Até sua teimosia, ela te
faz ter uma personalidade forte, embora nem sempre seja melhor que as coisas aconteçam
do seu jeito. Conversar com você é como navegar por um rio fluido e
interminável, abrindo novos horizontes e caminhando nas nuvens, pousando apenas quando você dorme de repente. Às vezes você esquece de lembrar e não lembra do
que esqueceu, mas está tudo bem, ninguém é perfeito. No entanto, eu não posso
elogiar sua essência, pois ela foi destruída, e tudo que posso fazer é tentar
reconstruí-la junto com você. O medo e a insegurança não são justificativas
para mentir, por que a mentira constrói ruínas, enquanto a verdade constrói
castelos eternos. Eu posso estar errado em alguma dessas acusações, mas não me
culpe: uma mentira torna todas as verdades duvidosas. No momento que você não é
mais a pessoa que surgia na minha mente, todos os nossos encontros são inexistentes,
pois as formas que eu via eram falsas, e a imaginação uma mera ilusão
passageira alimentando suas mentiras. Tenho certeza que você teve suas razões,
mas até que nos vejamos pessoalmente, a tendência é cairmos no abismo, pois não
há mais uma ponte de confiança entre nós. Não te incomoda ser derrotada em seu
próprio jogo? Reprima o dedo do meio e silencie as palavras que não agregam
nada, desenterre seus olhos verdadeiros como quando me contou toda a verdade.
Pela última vez, eu te peço, renda-se à luz, pois as tuas sombras são muitas,
renda os teus segredos internos, pois eles estão formando um monstro
indestrutível, e a memória que gera forma jamais volta a ser a mesma.
O
vento da mudança sopra novamente, eu ouço a hora da partida no relógio, mas nunca
é tarde para iniciar qualquer coisa que desejamos, por que não existe futuro
através do infinito azul, apenas a grande chama do presente, incansável e
brilhante, ardendo por nossas vontades. Eu gostaria de avançar contra este
fluxo, quebrando o silêncio da existência para obter uma resposta mais clara,
porém do outro lado do arco-íris, eu não temo a realidade do mundo das trevas,
pois o calor está sempre enchendo meu coração, o fogo continua queimando pela febre
de uma vida que me espera. Mudando lentamente o equilíbrio da vida, sob o céu
noturno, estou nu e rastejando sozinho na areia fria, esperando pacientemente.
Eu ouço o som de violinos à distância, as ondas do mar se cruzando, o alvoroço
de um contador de histórias, os sapatos batendo apressadamente no chão,
enquanto as nuvens de um cinza prata e roxeado se emaranham em cima da minha
cabeça. De repente, eu vejo folhas descansando nos meus pés, mas não há nenhuma
árvore à vista. Vejo memórias amargas nos meus olhos, mas eles continuam encarando
o horizonte. Então das areias surge um belíssimo chão de mármore, com grandes
pilares subindo e jardins se formando, jovens sorridentes correndo e
despreocupados sob a luz do sol. Eu olho para cima e a ampulheta do relógio
está girando para trás... haverá algo no meu passado que preciso consertar?
Naquelas torres que se formam, eu costumava escalar para um esconderijo
secreto, onde tínhamos tantos segredos para compartilhar. Naquela sala estou
diante de um papel rabiscado, com um nome divino sobre ele, e dos meus lábios
saem uma gosma preta que o preenche por inteiro. Naquele quarto meus dedos
queimam uma carta enviada para o abismo, derretendo pedras de esmeralda, rubi e
safira, desejando o impronunciável. Naquele quintal meu sangue é derramado,
maldições nascem, com uma grande sombra me cobrindo, mas esta sombra é minha
proteção, meu destino e minha esperança. Naquele templo eu derramo sêmen em
sacrilégio, assim como desonrei meu ancestral que era um homem cego e profanei
o livro sagrado. Naquelas imaginações eu via cabeças de bebês serem cortadas e
dançávamos sobre seus crânios em troca de uma vida luxuosa. Naquela entrada eu
o prendia do lado de fora, enquanto ele gritava para entrar, e do meu próprio punho
os olhos da sua mãe sentiam o ódio do meu coração. Agora como adagas sendo
apunhaladas em minhas costas, um sangue viscoso e negro sai dos meus lábios, os
jovens sorridentes olham com desdém, as paredes se desintegram, o jardim
apodrece, a areia se torna um mar de escuridão. Todos aqueles sons estão desaparecendo,
o céu é um boreal negro e diabólico. Então surge um espelho, e diante dele
minha imagem parece irreconhecível. Eu vou engatinhando, cada vez mais perto,
cada feição voltando a sua forma, e finalmente eu vejo quem sou de verdade. A
mão do outro lado atravessa o vidro, chamando-me de volta para a realidade, mas
aquele lugar não é onde eu deveria estar? O limbo dos meus pecados, dos meus
anseios secretos, do homem podre e vil que se esconde por trás destes olhos. Eu
não mereço estar lá... por que, então, o próprio deus abriu este portal? Ainda
há um propósito para mim nesta terra? Estou recebendo uma segunda chance? Mas
como poderei encarar todos os corações que magoei? Todos os amigos que trai?
Todas as escolhas depressivas que me fizeram ter uma vida insatisfeita? Ó,
minha outra metade, deixe-me onde estou! Viva feliz, como um pedaço de carne
sem alma, pois é melhor que a ignorância te preencha do que enxergar toda
maldade deste mundo. Você é minha luz, então ilumine o mundo. Quebre o
espelho, fragmente-o, para que nunca mais me encontre, pois eu sou a tua alma
assassina, o deus oculto que roubou sua atenção do criador.
Hoje
o mar escuro da mente fervilha com todo prazer, luzes morrendo como um homem
correndo atrás do seu pedágio, sentindo seu coração pesar demais para ser
proporcional em tamanho, pois no fim ele recebe a multa da vida. Como um diabo
branco, o lixo ainda faz seu jardim florescer, tarde da noite sentindo o corpo
suar com a brisa secreta, enquanto seus olhos calmos se fecham para esquecer-se
do mundo externo. Elegantemente magro,
sua cabeça se preenche com o vazio, queimando na língua um sabor infernal,
enquanto seus pés flutuam do corpo imóvel, estou sendo levado para uma viagem
sem volta? Por favor, deixe-me aqui, eu ainda desejo viver mais, sentir mais,
criar mais... eu quero conhecer o sem
sentido e semear sem sementes como uma música que sangra sem ninguém para
tocá-la. Eu quero ter um novo nome na esperança de esquecer a vergonha do
antigo, correndo como uma raposa livre e espalhando a poeira limpa da neve para
que toda natureza acorde! Mais uma vez aquela beleza mórbida brilha em
ressonância, meio dourada, meio fluorescente, percorrendo todo meu corpo como
maus caminhos que governam os caminhos que seguimos, mas eu sei que é
impossível você não nascer todos os dias, pois sem seus raios o mundo não pode acordar:
oh esplendida e magnífica aurora! Que brilha como ilusões vagando pelo ar, guiando
os anos de hipocrisia e fazendo os vampiros chorarem...! Você está no centro
das atenções, como gostaria de estar? Tão alta no céu, cercada por estrelas
invejosas, quem poderia alcançar sua grandeza? Quem poderia atingi-la agora que
piadas cruéis fazem você rir? Através da dimensão adjacente do dia, transcendendo
o azul celeste, você mais uma vez tenta hipnotizar o mundo, mas meus olhos estão
blindados contra mentiras, o véu foi arrancado e a vida se move um pouco mais
rápido, pois agora eu aproveito o longo tempo perdido – memórias de quando eu
acordava acreditando que você era o sol. Agora deixe o suicídio da música
assumir o controle como um portador infundindo sua alma, por que a partir de
hoje ninguém mais acreditará na sua falsa luz, assim como a estrela da manhã,
você cairá em surpresa repentina, libertando-se dos néctares da devoção para
tornar-se um anjo caído: em nosso último encontro, não foi você mesma quem
disse que a aurora não existe mais? Eu demorei para entender que você estava
tentando me dizer que não havia mais brilho em você, que diante do espelho você
era somente uma estrela em sombras, por que eu soube de coisas que ninguém mais
sabe. Ainda assim, eu permaneci ao seu lado, insistindo para que o sol
verdadeiro refletisse em você, enquanto as trevas te cobriam – havia dias em
que você nem parecia estar presente, apenas um pedaço de carne tentando
resgatar alguma sensação perdida, buscando prazeres onde não existia. A
depressão se enraizava no seu olhar, na sua voz e em suas expressões faciais,
mas eu continuava ali, colhendo as penas das suas asas, para que um dia você
voltasse a voar. Suas mãos estavam lavadas de todos os crimes da desilusão, mas
na sua mente você escalava tetos e paredes à procura de algum vestígio que
pudesse te fazer sentir, pela última vez, a terna chama da luz da divindade,
por que agora você tornou-se uma deusa esquecida. Mas a luz estava o tempo todo
ali, caminhando ao seu lado, fazendo você rir nas noites escuras, dançando em
festas exóticas e te vencendo duas vezes no xadrez, por que uma mente iluminada
sempre vence uma mente destruída. Eu tentei te tirar do assento desta gaiola
dourada, por que eu acreditava que você ainda era capaz de voar, mesmo que não
fosse para meus braços. O que ganhei em troca foi você dizer que eu era um
objeto para você e ser ignorado na frente de todos. Em resposta a isso, eu irei
fazer o caminho mais curto pelo seu naufrágio, por que na ausência do orgulho é
que somos tocados. Nós aceitamos prêmios durante nossas vidas para fazer com
que nos sintamos entre os vencedores, mas você nunca pode controlar as divisões
arrojadas do céu. Se você acredita nas areias do tempo, existe sempre uma
necessidade na vida de enxergar algo mais claro, um desejo repentino de ir além
do espelho, onde encontramos o mundo divino, pois com a intenção de iluminar a
mente, sem dúvida, o reflexo das ondas espalha a luz do sol para todos os
lados.
Atolado
na ilusão e silenciado pela ideia do tempo, eu me torno a soma atual de todas
as idades, deixando uma trilha de páginas queimadas para trás. Fugindo do útero
denso do sofrimento, eu espero que minhas feridas se fechem novamente, antes de
cavar meu próprio abismo onde a sanidade é minha vaidade. Desnorteado pela
misteriosa força que me guia, esta será uma confissão de derrota, mas você
nunca foi digna destas palavras. Eu espero que você saiba que esta felicidade é
passageira, pois depois de me apunhalar pelas costas, você sacudiu seus quadris
e selou seus lábios, mas um milhão de estrelas ainda assistem seu movimento,
esperando que a culpa e arrependimento dobrem sua mente. Ao som do vidro
lascado, seus pés caminham e sangram sem dor, seguindo a imperfeição da sua
própria essência refletida no seu amado, vendo seus dentes conversando, mas
nenhum som é ouvido, pois sua mente não está mais lá. Algo está faltando, um
pedaço da sua alma que só funcionava quando eu estava presente, a outra
essência, aquela que eu desejava despertar em você para que as cores do mundo
voltassem a brilhar, até que o cheiro do ar nos seus pulmões acelerasse as
batidas e todos seus vícios fossem abandonados. Essa fuga de si mesma fazem
seus atos falarem mais baixo do que minhas palavras, mas este é apenas um
tropeço do seu medo, pois de repente você percebe que sua vida não significa
nada. Parece que você é tão contraditória, por que seus anseios mudam mais
rápido do que uma prostituta mudando de homem. Agora, com poderes esmaecidos,
nós ficamos por horas sentados ao lado de uma televisão apagada, esperando que
alguém especial ligue a tomada. Mas isso não me preocupa, por que quando as
pessoas saem de nossas vidas, os elos são separados, as mentes desconectadas,
os olhares esquecidos. Então dizemos a nós mesmos: guardarei comigo o melhor
desta pessoa em meu coração! E, no entanto, não basta conhecermos outra pessoa
para este sentimento acabar? Quando amamos, estamos ausentes de toda lógica e
razão, mas quando o amor acaba, a pessoa se torna um vegetal aos nossos olhos,
como uma árvore velha que vemos todos os dias na esquina. Talvez por isso
exista apenas uma alma-gêmea no mundo, da qual nunca nos desvinculamos, e que
sempre quando revemos é como se fosse a primeira vez. Mas quem garante que esta
alma-gêmea não esteja morta? Estamos esperando por alguém que já partiu? Esse
alguém, ao menos, existe? O que estou tentando dizer é que não podemos esperar
pelo que é improvável, mas podemos construir algo com alguém que amamos no
presente, pois o futuro é incerto. Quando eu estava com você, eu não precisava
fazer o tempo durar, pois como um sol invadindo a meia-noite, muitos dias se
passavam em um instante, com o céu das nossas bocas mudando seu tom do branco para
o negro. Pode ser que o único iludido aqui seja eu, mas se assim for, então
esta foi a melhor ilusão que eu já tive! Uma servidão involuntária, sempre
lembrando uma sensação de emoção nas horas vazias, tragando palavras que nunca
foram oferecidas como uma consolação para o solitário. Ainda assim, eu não
posso fingir que está tudo bem, pois como um ator roubando a cena, todos os
pensamentos que você luta para esconder uma hora vem à tona. Eu não queria que
minhas cicatrizes aparecessem, pois elas não são externas, e nesses momentos somente
as mães sabem, quando veem nos olhos do filho o favorecimento da morte. Mas
esta é a porção, este é o riso, esta é a luz da inocência, o silêncio do mar
tempestuoso, pegando-nos delicadamente quando caímos e desintegrando-se em
argila. Prazer e dor são as orlas que movem o espírito quando a mente está
fraca, por isso alguns voam enquanto outros caem, e alguns andam enquanto
outros rastejam. Você consegue sentir a úmida respiração da natureza nos
guiando pelo silêncio da amenidade? Quase como um toque da folha raspando ou como
uma gota de chuva que cai depois que as nuvens já partiram... então o nosso
disfarce é descoberto, e a verdadeira imagem que se esconde por trás dessa pele
é revelada, emergindo do casulo, enquanto uma música meio lembrada é tocada suavemente
em nossas mentes.
Imaginei-me
invadindo desesperadamente um mar de apêndices, sentindo a massa de ossos
correndo lentamente pela frente do meu corpo, enquanto minha alma ficava para
trás. Deitado no falso paraíso, eu te encontrei ao meu lado, você parecia respirar
o ar sem esforço, e eu podia ver o futuro através dos seus olhos. Todas as
coisas pareciam possíveis ao seu lado, tudo isso no começo, antes da luz do seu
coração desaparecer suavemente, pois mentindo para o mundo, você decidiu que
precisava se esconder, mas eu sempre achei que você guardava dentro de si
encantos inestimáveis. Você era como uma borboleta radiante, pronta para içar
voo a qualquer momento, mas nosso romance ficou alinhado e rotulado em pequenas
correntes, pois através dos selos e cadeados, você sentiu uma mão no seu
pescoço, palmas e dedos agarrando seus ombros e esmagando-a com intermináveis cobranças.
Você estava presa em um pequeno declínio e precisava se libertar da sombra de
uma lenta decadência provinda da sua própria casa, mas apesar de ser tão
difícil admitir isso, eu falhei em tentar ajudá-la quando quebrei o silêncio
que nos mantinha separados numa eterna saudade. Agora estou há dias sem dormir
ou comer, por que minha mente não pode descansar enquanto a argila se forma
sobre meus pés, virando-se para enfrentar a gargalhada através dele... você
sabe, o maior inimigo do nosso amor está dentro de mim e não fora. Mas quem
poderá impedi-lo de moldar-me a seu bel prazer, sabendo que este corpo lhe
pertencerá aos meus trinta e três anos? Como sulcos titilantes no céu, nós não
podemos fugir da tempestade que nos persegue, mas podemos construir um abrigo
para nos proteger de suas investidas fatais. Os meus últimos anos nesta terra,
eu quero viver ao seu lado, pois como células negras que representam uma terra
estrangeira, quando você pisa nessa terra, as cores começam a colorir as partes
imundas, e os espectros com dedos finos fogem da sua presença. Com você as
reflexões parecem tão nítidas, mas eu não estou tentando questionar sua decisão:
em minha opinião, você fez uma excelente escolha, pois não quero colocar dúvida
na sua mente, eu estou feliz que você finalmente encontrou sua voz interna! Mas
acho justo você saber por que a Alma Assassina nunca nos quis juntos... você
está preparada para a verdade? Então segure em meus dedos esqueléticos e venha,
entre nesta nuvem azul flutuante, pois eu irei te revelar tudo agora. Ora, tudo
começou quando completei meus dezoito anos e tive meu primeiro relacionamento.
Ela era como uma porta escura, pois o som das suas mentiras calmas era oculto
atrás da porta. Assim, após o término, pela primeira vez eu conheci a magia de
perto, mas eu era um completo ignorante, utilizando das forças das trevas para
obter dinheiro e conseguir minha primeira amada de volta. Ali nasceram as duas
maldições: o tempo determinado para que ficássemos juntos foi o tempo que todos
os meus relacionamentos futuros durariam, assim como nenhuma porta de emprego
se abriria para mim, exceto quando meu pai resolveu me contratar, mas tal
trabalho durou somente dois meses como a maldição do amor, mesmo que meu pai tivesse
planos futuros para nós dois na empresa. A escuridão me cobriu como uma noite
sem estrelas, e em minha insanidade eu continuava buscando o senhor do obscuro,
cuspindo em nome sagrado para que fosse reconhecido. Diante disso, o satanismo
acabou tornando-se algo aceitável, até eu conhecer a segunda amada, que era
como um lago de cristal me puxando para um mergulho em suas lágrimas de
empatia. Ela me fez recobrar a consciência e me afastar das trevas, mas assim
como a primeira, ela foi arrancada de mim no momento que retornei para a luz,
porém eu continuei mantendo-as vivas através das cartas anônimas, as quais eu
escrevia incessantemente com o poder mágico provindo da Alma Assassina. Então
veio a terceira amada, o meu maior pesadelo – por mais efêmero que fosse nosso
romance, com ela parecia que eu estava correndo em um jardim bonito com o vento
do verão espancando meu rosto, mas antes que se formasse um sorriso nos meus
lábios, as flores começaram a apodrecer e o ar escorregou frio como um
fantasma. Foi necessário que eu fizesse outro ritual, mas desta vez eu não
estaria invocando seres de dimensões infernais, mas transferindo o que estava
dentro dela para dentro de mim. Até ali, a Alma Assassina era somente alguém de
quem se ouvia falar, pois ainda estava sendo criada pelo fogo da primeira amada
e purificada pela água da segunda amada, para formar-se através do elemento
terra da terceira amada. O enorme preço que paguei foi o da depressão, que
paralisou minha vida durante muitos anos. Eu achava que não tinha mais jeito
para mim, pois até meus relacionamentos à distância acabavam em dois meses. Foi
quando eu conheci a aurora, que é a quarta amada, simbolizada pelo elemento ar:
ela foi, sem sombra de dúvidas, o sopro que deu fôlego à Alma Assassina, a vida
que lhe era predestinada dentro de mim.
Mas ela era um amor não recíproco... e isso me feriu muito, pois eu acreditei
que ela era a tão sonhada amada que se casaria com a Alma Assassina. Meus anos
agora passavam como um sono de vigília, e de repente nem a magia fazia mais
sentido para mim. Contudo, eu sabia que não tinha acabado ainda, pois aquela
promessa tinha sido feita pelo próprio deus! Por fim, eu conheci a gloriosa
quintessência, a mais bela e perfeita fusão dos quatro elementos, a quinta
amada, que me fez ter os dois melhores meses da minha vida. No entanto, por
mais que nossos mapas astrais combinassem, ela já fazia parte de uma grande
bolha de sete anos, na qual preferiu continuar lá dentro ao invés de se
entregar a um novo amor proibido sob a sombra da Alma Assassina. E
mais uma vez eu fiquei sozinho. Todas as esperanças haviam se dissipado, e eu
dizia a mim mesmo que, aquela que durasse mais de dois meses, seria destinada
a se casar comigo. Eu lembro que às vezes você falava sobre querer casar comigo, e eu achava tudo
tão estranho, por que no fundo eu sabia que você seria arrancada de mim também.
Mas o real motivo para que a Alma Assassina não nos quisesse juntos é por que o
amor enfraquece nossa magia, e depois de tanto tempo sofrendo, sendo lançado no
lamaçal das minhas próprias decisões, eu finalmente consegui amar novamente, e
não te darei nenhum título de sexta ou sétima amada, pois estou cansado disso
tudo, eu só queria... ser feliz com quem eu amo antes de partir deste planeta
solitário. Essas palavras devem servir apenas para torcer a faca, mas perdida
no mundo obscuro da minha mente, você enfrenta a crucificação do meu eu
soberbo, sem saber quando suas asas alcançarão os céus.
Correndo
para longe de casa, eu sinto a luz do sol ardendo na minha pele, seu brilho
rejuvenesce meu rosto, enquanto a brisa da manhã me leva para um lugar
distante. Meus pés pisam em poças profundas, e em cada passo criam-se bolhas no
ar com recordações dos meus efêmeros romances. Ainda assim, eu continuo
correndo, meu corpo não pode se cansar agora, pois eu fugi do portão do
desamparo, amaldiçoado pelas estações de agosto. Talvez fosse o vento, mas estas
bolhas continuam me perseguindo, com lembranças de amor, ódio e paixão
ardente... todas elas fazem parte de mim agora, eu não posso arrancá-las do meu
peito? Uma vez longe, mas ainda tão perto, as nuvens sombrias começam a se
reunir, e aqueles maravilhosos raios de sol são cobertos como cisnes dourados
afundando nas águas. Eu devo parar e me preencher com a escuridão, mas minhas
pernas continuam a se movimentar contra minha vontade, meu instinto me obriga a
se libertar do velho mundo. De repente, uma por uma, as bolhas começam se
chocar, e de relance eu consigo ver no espelho delas um sorriso no meu rosto.
Mas os resíduos de água se espalham pelo chão, formando uma gigantesca onda que
tenta me engolir, porém como um surfista confiante, eu desvio de todas elas,
até que a maré se acalme e a tempestade cesse. O sol brilha novamente no céu e
o mar seca na terra, mas sem misericórdia eu me despeço do meu passado. Agora
eu recupero as rédeas da minha vida e percebo que não estou mais correndo, eu
sou o dono do meu próprio destino novamente! Mas quando eu olho para trás,
daquelas águas nascem plantas e árvores florescentes, seus galhos se entrelaçam
entre si e apontam na direção do futuro – eu finalmente percebo que elas nunca
quiseram meu mal, apenas me apressavam para encontrar a felicidade. As lágrimas
congelam no meu rosto, pois o tempo todo meu único inimigo era meu próprio
ego... seria tentador voltar lá e me entregar a toda aquela natureza linda,
deixando que o orvalho pingasse sobre minha testa e derretesse nos meus lábios,
mas fechando os olhos e respirando o cheiro das amadas, eu sigo meu caminho sem
olhar para trás. Por uma vida, por deus ou por você, estou pronto para
reescrever minha história em páginas rasgadas, mas agora a tinta é forte, e a
precisão com a qual eu escrevo é a de um homem focado e destemido. Só mais um
pouco e estarei lá, na vida que eu sempre sonhei, então por que sinto que estou
cometendo mais um erro em não aceitar minha realidade? Da negação vem a
ingratidão, de maneira que eu nunca poderei ser digno sem agradecimento. Portanto,
quando a tua mão cair sobre mim, nem com todas as forças das montanhas e dos
mares eu poderei suportar o peso se não houver gratidão em meu coração.
Grandioso e único, e a todos que tu colocaste na minha vida... aos que me
fizeram sofrer e amadurecer até hoje, aos que me presentearam com momentos
felizes e compartilharam gestos de amor, risadas e traições, a todos eu só
queria dizer muito obrigado! A silhueta do lugar de onde eu pertenço começa a
surgir no céu, e eu percebo que o tempo todo estava bem ali, próximo à mim, mas
meus olhos estavam cegos para ver. Acima da minha cabeça, uma bolha ainda
brilha com os raios do sol, formando em seu reflexo um lindo arco-íris no
horizonte: obrigado a você, gentil violeta, pois você foi a única que chegou
tão perto de quebrar esta maldição – nem todos os rituais ou orações foram
capazes de fazer o que você fez, mas a ordália de deus é um peso que eu devo
carregar sozinho.