sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A Perdição da Aurora

     A doce canção de sua voz ainda soa em meus ouvidos, incrivelmente suave e morna como o calor de noites de verão. O leve aroma do seu cheiro ainda escorre pelos meus cabelos e desce pelo meu corpo como uma cachoeira jorrando toda sua gratidão aos rios. Pela maior parte do tempo e de todos os dias frios que se passaram, das palavras que saíram da minha boca ou de tudo o que fiz para nos manter unidos ao laço do amor, vejo que meus erros valeram mais do que todo o meu esforço e a verdade era mais clara do que raios de sol invadindo o céu ao meio-dia. Da mesma forma que uma alma nasce, ela se vai ao fim dos seus dias, mas com toda a imperícia de seus atos e ciscos que ficam para trás, das conversas ao longo da madrugada ou dos olhares que derretem o coração, dos lugares e das noites, dos risos e dos toques, tudo fica na memória. O que nos faz se sentir vivos são essas lembranças, por que são elas a nossa história, e adiante o que vem cobre o brilhante esquecimento. Assim, sua última canção soava para “tirar o fôlego”, sua riqueza e seu orgulho fizeram de você o oposto do que era e seus olhos encontraram novos caminhos belos como pinturas. Eu me tornei uma formiga para que você pisasse e uma sombra nas arvores para que você pudesse atravessar. Sua perdição começou no momento da sua ida, mas suas escolhas e palavras foram cravadas em minhas mãos, o seu espírito o brinquedo de meus segredos noturnos. Esta noite você conhecerá o pavor que antecipa sua alvorada, o vulto que te persegue na calada dos sonhos e o caminho que preparei para sua perdição.
    Naquele dia passeava eu pelas ruas frias do único lugar gelado da cidade, caminhava como quem anda só por andar e meus olhos pareciam cansados. Avistei tão longe e de maneira frívola o que não pude deixar de olhar, estranhamente seguia aquelas donzelas que pareciam temer o desconfiado homem que as perseguia, mas então você apareceu. Seus cabelos eram louros como a luz que se lançava contra nós, seus olhos, um hortelã prateado, sua voz, um coral de anjos esvoaçando suas asas. Naquele dia eu conheci você e não entendia como sua luz brilhava tanto quanto a lua: as chamas do seu desejo enchiam as sombras à minha volta. Depois de algum tempo voltei a te encontrar na mesma noite, e embora fosse uma evanescente despedida, foi o novembro que deixamos as diferenças de lado e entramos na vida um do outro. A partir de então nossos espíritos se conectaram a tal ponto que os meses não eram suficientes para derroga-los, porém eu não notei que os meus dias não passavam.
    A cobiça que me corria por você desfazia tudo na minha rasa índole e as raízes do chão acorrentavam os meus passos adiante; eu me perguntava o que era aquilo, quando a paixão que sentia por você tornou-se como montes de oliveiras sendo devoradas pelo fogo puro da verdade, e embora sem volta, nada podia me afastar da sua luz... uma obsessão pecaminosa que fez-me buscar os poderes da noite para beber um pouco mais da sua intensa aurora. Chegando a hora, seus pensamentos foram dominados pelo meu coração negro e suas noites inquietas abriram-te a visão da escrita, mas nunca pude acreditar que tudo o que você sentiu foi obra da minha escuridão. O seu orgulho era duro como pedra, mas por seus lábios eu ouvi doces e eróticas palavras que desapareceram como uma chuva passageira que molha no intuito de deixar a vontade. Seus sonhos comigo eram vazios e seus planos ocos como seu medo, eu nunca pude entender como uma mulher tão esperta e volúvel era estreitamente melancólica a tal ponto de desistir do que era verdadeiro por algo vivido nas imaginações de seus próprios devaneios cheios de mágoas e encantos passados. Mas foi ali, depois de um profundo beijo desajeitado, de medos ligeiros e risos levianos, que você tomou sua escolha. No fim, todos os impulsos e desejos caóticos de levá-la para o meu mundo tornaram-se sonhos vazios e sem vida, e falhou-me as chances das trevas corromperem a sua luz.

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