sábado, 16 de maio de 2015

Coração de Gelo

    As nuvens recaídas derramam uma chuva obscena desfazendo-se numa pintura sem moldura suavemente camuflada em peles alheias. Num batimento viciante e volúvel as ondas do céu encharcam meu corpo e ecoam a falsa esterilização dos meus olhos vazios olhando para o nada, encarando uma perda com frios arrepios sobre meu ego pulverizado e descendo uma correnteza interior enquanto empalideço numa bolha dormente flutuando entre folhas que me acariciam como dedos fantasmas fazendo cócegas e mordiscando. Os sons silenciosos me acalmam em formas e cores mudando de humor como pupilas dilatando suas tonalidades, emergindo em ventos que respiram minha vida escorregando num raso rio virgem sob uma canção escrita, imaginando qual o gosto da cor que vagamente se espalha nas coisas frágeis e puxa-me mais forte para esvaziar-se do sangue sujo como rosas num vaso branco absorvendo a doença que mastiga meu crânio. As horas passam devagar como um homem ferido nas linhas moventes do horizonte bebendo a água de uma miragem e comendo cacto com a boca sangrando, os vermes abrem uma fenda em sua barriga e um rosto pálido e cansado se move em risadas na sua mente, usando máscaras feitas para esconder seus grandes olhos brilhantes alimentando as mentiras de uma sanidade fraca. As luzes em seu olhar são como piscinas frescas atraindo os para-sóis gastos de um sol gelado e escurecido, como uma gelatinosa saliva derramando sobre sua língua coisas indizíveis, ele armazena o calor e o desejo de uma dor-prisma queimando suas narinas e derretendo seus lábios encobertos de cinzas enquanto a carcaça da sua personalidade muda é levada pela poeira dos seus sonhos congelados na realidade. É assim que rangendo os dentes e cuspindo uma avalanche de adrenalina, mais uma vez eu fecho meus olhos, mas a membrana fina não pode encobrir a marca que me confunde, fingindo não ver os raios de prata dançando no crescente frio que flutua e perfuma o ar – o limbo que costumava ser meu interior e aquecia minha respiração opressiva – em fragmentos de um flácido e cintilante vislumbre dos meus ossos cansados de viver entre sombras emitindo minha melancolia, despertando todos os dias como folhas em pedaços através de um vidro cor-de-rosa mergulhado dentro da minha carne em mil nervos abrindo fissuras com alfinetes espetados. Abandonado em uma consciência imóvel, as trevas preenchem meu olhar no alvorecer das estações, centenas de pensamentos sendo esquecidos e sinais perdendo seus significados, sem lembrar-se de onde estou nem da vida que passou diante dos meus olhos, descobrindo o quão pouco eu realizei por todos os meus planos negados e sofridos nas nuances de um segredo guardado em minhas recordações. A todos os meus amigos eu digo, essas são as últimas palavras que irei dizer e elas irão me libertar: vocês sabem, quem já está dormindo não sente mais dor. Então se algum dia vocês leem isto fiquem sabendo que eu gostaria de estar com todos vocês, mas meu corpo se foi, os meus cabelos se dissolveram nos ventos frios e o meu cheiro se espalhou pelo mar das almas falidas, a minha voz atormenta os camponeses para que se ergam contra os grandes engajadores que louvam a arquitetura da agressão e o meu olhar observa-os no manto negro da noite com o poder de um vazio resultante, sentindo o que as pessoas carregam em volta de seus ombros como cargas pesadas de carenagem, e no coração a dor agoniante que se intensifica ao ver todos aqueles demônios bebendo e dançando, eles cultuam e brindam ao senhor da noite enquanto seus corpos desalmados servem de banquete, exibindo pontualmente que é tarde demais para a humanidade, pois a calmaria apenas faz com que o agressor fique mais agressivo e somente o terror e a feiura revelam o que a morte realmente significa.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

A Carta Negra


Sensual carta anônima

“Amada minha,
No flutuante lago sem forma da sua canção, sua voz atraiu-me amorosamente para dentro dos seus olhos.
A luz verde brilhava em seu rosto, enchendo os que te rodeavam com o mais belo brilho da meia-lua dolorida, amarga e triste.
Como a sombra de um amante faminto eu transava com seus olhos cantantes, arrepiando-me como um sentimento que transformava seu corpo em pecado.
Cada batida do seu coração era cansada, mas seus olhos efêmeros eram cobertos por uma esmagadora tristeza como rostos sujos de lama, amenizados pelo calor incandescente de um auxilio inconsolável.
Em silêncio eu observava numa nuvem de memória, meus olhos brancos e secos choravam um rio de escuridão, sentindo calafrios em cada verso da sua melodia até perceber que não havia espaço para mim, pois você sempre me tratou como uma doença mortífera.
Durante anos eu me perguntei, o que eu via em você ou nas outras amadas?
Fizeram-me entrar em colapso e esquecer de que as trevas ocultam a luz do conhecimento, arruinando minha vida com palavras torcidas e mentiras que me levaram direto para um mergulho no lago negro.
É imensamente hediondo da sua parte achar que esta carta foi escrita somente para satisfazê-la, afinal encantado pela aurora que emana da sua beleza, o que eram minhas palavras além de ilusões de um olho nu ou fantasmas deitando no piso do seu quarto?
Eu finamente vejo por que eu me apaixonei por você, agora eu vejo, o que você realmente significa para estes olhos vazios que estão olhando de volta para mim.
Com um lenço eu sinto a dor desta última ferida como uma falsa fixação nas suas costas segurando minha vida pela pele dos seus dentes.
O que me resta é limpar a mente de um sentimento morto para ser invadido pela mancha escura que escorre num quieto desespero em meus lascivos sonhos.”

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Folhas Brancas


Sensual carta anônima

“Amada minha,
Pela janela eu posso ver as nuvens dançando enquanto o ar sopra e meu nariz congela.
De longe o sol está se pondo, vermelho com ouro, como deve ser, cuspindo sua luz para aonde as trevas nascem, e em algum lugar pode ser que você esteja pensando em mim.
Quando a noite começa você deseja um pouco de diversão, mas quando a festa termina você é a garota que ninguém pode possuir.
Sua tristeza descarrega altamente no céu enquanto seus pés soterram descalços na areia, ainda assim, como um fósforo acendendo sua raiva, tudo o que você quer é ser liberta como folhas varridas pelo vento.
Essa corrente que afugenta sua sombra é como um homem pagando seu imposto, tão ligado como uma tatuagem, a chuva de neve na sua pele nunca se desvanece, mas eu sei exatamente do que você precisa...
Como lágrimas traídas pelas luzes da noite, alguém tem tirado o brilho dos seus olhos e substituído por dor, fazendo-a sentir-se como se não fosse ninguém, porém onde demônios brincam à luz das velas, uma criança sempre se encharca de sangue – este segredo guardado atrás dos meus olhos é o que vai mudar sua vida e ser a última peça do seu quebra-cabeça.
Tome minha mão e junte-se a mim ao abraço do escuro, lembre-se do meu perfume e do meu toque, seja como uma noiva furiosa banhando-se no sangue do mar hipnotizante.
Todas aquelas cartas enviadas foram apenas o conteúdo que eu lia em seus olhos ansiosos: a carne salgada da sua doçura apertada gotejando e implorando para expelir novamente enquanto meigamente estremecia.
O dia está chegando em que a chuva limpará o que nos tornamos e os fluxos dimensionais da nossa realidade voltarão a se colidir enquanto os palhaços aplaudem.
Os pequenos momentos que nos rodeiam podem ser esquecidos, mas em cada instante que passa devagar eu dei minha alma inteira para alcançar seu sorriso, sabendo que onde há escuridão as estrelas brilham.”

domingo, 12 de abril de 2015

Deite-se com as Trevas

    Entre os lençóis carmesim uma presença se espalha como uma febre escura, enegrecendo as paredes com braços reconfortantes numa radiante escuridão prata repousando inteiramente na calmaria de uma agitação exacerbada. O céu da meia-noite lança seu feitiço e o cheiro de alecrim doce desperta os amantes libidinosos debaixo da neve virgem ofegando entre árvores nuas e levando uma música libertina através da brisa de uma aura atraente. Como membros recém-nascidos de um bebê chiando a cada passo, os gemidos inexprimíveis enchem a terra com um suspiro recheado de vontades luxuriosas, vibrando entre olhos cheios de morte e seduzidos a entregar seus corpos para o apetite selvagem do prazer. Através de uma clareira encantadora em uma noite estranhamente serena com perfume no ar isto está apenas começando, a ficção chega quando os sinais de amor florescem as armas da sensibilidade e nos libertam da vergonha, mas é na realidade que sentimos a envenenada injeção como uma dádiva no céu escuro, escondendo entre arbustos de uma noite chuvosa os olhares das almas em pedaços se deitando na poeira de suas efígies enganadoras. O giro erótico dos súcubos começa quando você não consegue mais dançar, quando sua mente acelera no desejo de ouvir a canção sexual evocada e o incenso da pulsação penetra as silhuetas do seu corpo inabitado. Sob um lugar aonde nada é como pareceu uma vez, eu chamo seu nome e você vem como uma prostituta disposta a meu bel prazer, seu olhar de consolo inflama com a chama da ternura, seus desejos se erguem em pálidos membros frágeis tocando e esmagando com uma dança apressada, trazendo um sorriso cínico na névoa da hora mais escura da noite e inundada antes da primeira respiração do alvorecer. Com passos provocantes eu sinto você se aproximar e seu coração bombeando numa fome crescente por toques gelados, abrindo sua alma para entregar-me por completo e satisfazer seus desejos como um carneiro para o abate, deixando-me deslizar para dentro e rastejar por seu sangue como uma mancha de óleo no mar, emocionando sua carne fresca com beijos ardentes e provando a fruta doce da sua seiva drenada entre lençóis manchados. Debaixo do céu vermelho e da voz descontrolada do vento, eu sou o fogo que queima dentro do seu sangue e a tentação que não se afasta da sua cama, seus lábios frios se corrompem com a rubra mordida lambendo a maré da paixão obscura enquanto envolve a batida rítmica dos espasmos de êxtase... deixando os problemas fugirem e deslizando com facilidade dos meus pés para os joelhos, me possua e me sacie, deite-se comigo e compartilhe o sabor deste gozo queimando, vamos viver rápido e perigosamente com corações cheios e vozes altas, bêbados numa alegria desenvergonhada enquanto desvanecemos no ar com cheiro de almíscar e provocamos a picada envenenada da serpente do diabo.

domingo, 5 de abril de 2015

Sons da Natureza Escura

   Em ébrias sombras vermelhas do ocaso a gananciosa risada dos pecadores me envolve nos fluxos negros da impureza. Eles aparecem à noite, vindo de dentro, evitando a luz, suas vozes sussurram em minha cabeça como um frio hálito insaciável, mas para eles minha aparência é apenas um pedaço de suas imagens vinculadas por algum senso de silenciosas batidas, onde meu coração toca os viciantes acordes de suas almas alojadas no miasma como fúnebres melodias de um piano preenchendo meu corpo com manchas escuras muito surdo para sentir o machucado. A comovente voz da dor me enforca como palavras nunca ditas, nunca ouvidas, mas que num choque de arrepio precisam ser ditas: eles estão voltando no vapor dos meus pensamentos para me rodear como um enxame de sombras furiosas, crocitando como corujas sem olhos em busca de quem realmente eu sou, enquanto o que antecede meu despertar acompanha a boa forma odiosa de tranquilizar o que ficou na incisão do meu corpo pálido. Esta noite o céu está coberto como braços que se abrem espalhando a escuridão, um mundo adormecido no escuro onde poucos conseguem sentir a lenta batida do avanço fúnebre das forças das trevas, lambendo os rios onde o ar frio e arrepiante propaga seu odor lentamente nas planícies desertas e geladas em uma nuvem de poeira, recobrindo a terra com mares de sangue num som abafado de sinos chorando pelas almas escurecidas. Essa lassitude assombra minha mente triste como um gosto amargo de déjà-vu, mergulhando profundamente em agonias insuportáveis, grandes fontes de águas que vazam de olhos pretos fixos em mim – como esculturas idílicas de pedra ou rosas abrangidas do túmulo – eu piso neste anojo melancólico, corroendo minhas mãos coladas de sangue, mas realmente desejo nunca ter existido quando suas presenças congelam as veias do coração, o cheiro que inalam são como corpos inertes brincando de cavar o solo, os lagos dos céus me guardam como um doravante prisioneiro da penumbra em suas garras frias, uma célula aonde a luz não chega, espalhando meus sentidos num langor onde o rosto da morte me acaricia disfarçado de dor e farpas, tão fundo como o fluxo que alimenta os córregos ou a voz do poeta que persiste, este cemitério de olhares infames cumprimentando a meia-noite é onde sou lançado num túnel longo de ansiedades. Os olhos lívidos se apagam lentamente à minha volta, amedrontando o espectro do meu interior como infortúnios de um sofrimento ignorado para deslizar lentamente no clamor do silêncio em meandros de lembranças que já não tenho. Como o prazer elevando-se dentro de mim, meu espírito é levado a vagar pelos vivos, minhas lágrimas são como a chuva caindo ao redor da humanidade e sendo capaz de ler em cada mente a fuga por um sonho infinito, as marcas na minha face são os estigmas de uma confusão profana me consumindo... uma triste corda flutuando acima de uma pira funerária me chamando para abandonar um mundo onde sou mal compreendido, onde homens desejam esguichar sêmen cansados de censuras e mulheres se preocupam com a beleza de um corpo frio, pois ainda que dia após dia essas drogas nos façam sorrir para o espelho, os pecadores continuam a escorregar violentamente na estranha sensação de entrega e engolem o gosto amargo de seus egos insatisfeitos, conduzidos pelo ruído de satanás, aquele que a alça da porta gira e ninguém se cega por tamanha brancura, calmamente tragados por um ligeiro vento nos acariciando como a agonia de uma criança corrompendo sua inocência para se livrar das dores de um momento fúnebre.

Cronologia