quarta-feira, 23 de abril de 2014

Raízes da Sombra

    Nos poucos dias que passam os pequenos traços de memória fantasmagórica ainda se atrevem a invadir meu breve pensamento. Quando entrego meus olhos à luz do céu profundo ou às sombras de árvores verdes e castanhas, o que sinto é ávido perante todas as coisas que me transformaram naquilo que sou, embora a verdade seja indiferente a essas flutuantes sensações de atravessar linhas e mais linhas para encontrar uma resposta e de nada servir, pois palavras são vento. Ao menos uma noite seria o bastante para sentir aquela presença fria como gelo, os olhos como chamas verdes e a voz a mais doce canção dos templos da lua. A visão que trago são das brancas e rosadas pérolas espalhadas por sua pele como nuvens de um céu esquecido. O seu perdão tornou-se para mim como o sol que ilumina as tardes de fevereiro, como a clara palidez da lua que ao longe manifesta as lembranças que carrego. Eu poderia dizer que essa obsessão diabólica e destemível de chegar ao seu encontro e coagir com os seres espirituais para sentir o cheiro da noite, o teu cheiro, o puro aroma dos encantos de uma donzela virgem... faria de mim como trevas ao meio-dia, mas as vezes o que digo parece tão confuso, sendo o oposto do que você entende como deixar de nadar em um rio e se afogar ou como saber voar quando não possui asas. Desde que meus dedos tocaram-te os lábios, sua boca se fechou, quando minha sombra tampou-te a visão, seus olhos cegaram. Seria eu como uma criança perdida na escuridão e amamentada pela mãe dos demônios, como um espírito atormentado pela canção muda de uma estrela vinda do desconhecido? Como as chamas que te consomem ou os demônios que perseguem a sua alma? Oh, teme que sou guiado por espíritos imundos para conquistar seu coração? Não pense isso de mim, enxergue o ser humano que sou: o homem que descansa durante o dia por que a madrugada o chama. Que se perde em pensamentos abstratos quando seus sonhos são vazios e seus objetivos uma estrada sem rumo. Que descobre fantasias e nunca acorda na realidade, por que o sono mais profundo é aquele que deixamos de sonhar. Sou o homem que arrancou os próprios olhos para que ninguém se sentisse seguro ao meu lado. O deus do meu universo interior, mas que sabe que há outro me vigiando nas sombras.

terça-feira, 11 de março de 2014

O Inferno da Aurora

    Olhando as cores escuras da noite nas desviadas visões de cada pedaço de nuvem que desaparece no céu negro ou dos espíritos que voam colidindo seus servos e vestem a ordem de seus olhos, no caminhar lento e ainda, petrificado a cada passo, a devasta cor bege escurecida dos assentos que nos esperam no templo da impureza é para aqueles que não sabem o que procuram com seus rubros disfarces. As palavras, estas palavras, as que de alguma maneira distorcem seus significados numa confusão vaga e passageira, quando o que realmente querem dizer não é visto por olhos nus. As mãos, estas mãos, tão vermelhas como o sangue que desaparece lentamente quando a carne do morto já tornou-se em ossos. O mundo é grande demais para que caibam nele, estas vazias palavras e estas mãos sujas que nada mais podem fazer do que tomar o sono do inocente, e assim desvanecem como areia ao vento. Eu poderia acordar mil forças lamuriosas e infestadas de feitiços noturnos, mas, ainda assim, somente eu as veria: minha loucura tornou-se infungível quando a necessidade de preencher o branco com toda a negritude já não é pela razão, mas o tolo vê aquilo que não é do seu alcance, os seus movimentos tornaram-se como uma verdadeira peste fantasmagórica e elevada a pensamentos que estão além do seu entendimento. Deste modo, a espiritualidade das trevas é a sua verdadeira luz. Estou certo de que valeria a pena recomeçar quando todos os que me viam já fecharam seus olhos, quando o chão que eu piso tornou-se em poças sombrias e a mão que me toma pelo pescoço não aperta antes que eu fale.
    Na insuficiência de tudo o que passei e dos dias que eram apenas cânticos ao dia seguinte, a tortura de olhar para os cantos apagados da casa e fazer de conta que a vida surgiria de alguma brecha com o brilho oculto que a chuva ofuscava nas gotas da janela ou da esperança de que o sol se tornasse frio, eu percebo o quão pobre e moribundo eu fui, a tremula onda de pensamentos suicidas que não valiam mais do que minha própria existência, permanecido quieto e silenciado. A oração despiu-se no interior e de nada valiam aqueles deuses; envergonhado tornou-se aos seres que ouviam a sua voz, falo de mim, as chamas que eram ascendidas quando ninguém além de si mesmo estava lá, em uma interrupta alusão infinita. Mas as respostas eram sussurros de sombras que já não existiam, os murmúrios, pesadelos de uma época estranha. Eu não poderia culpar aquela pálida e doce menina como mel de primavera, embora fosse dela, seus rubros cachos foram diminuindo a cada quinzena, sua voz, tornou-se como um fio de escarlate e sua vida, a inexistência do tempo. A destruição que causei em seus anos foram enchentes de palavras que se desprenderam do meu ódio, oh maldição, por que não posso seguir meus dias em paz e olhar para as folhas que caem das arvores, ouvir os gritos que uma criança faz ao correr pelas ruas ou sentir o vento que me espanca friamente em noites chuvosas? O que parou minha vida, oh, foram os caminhos que segui? O que destruiu minha esperança, oh, fora o pecado que me fundi?
    Esta noite você estará liberta de sua prisão astral, mas não me ouvirá lamentar como um garoto que chora quando tropeça no chão gelado. Ouça minha voz, mas também ouça as minhas palavras – lâminas ardentes por corações libertinos – que perseguiu sua alma nas longas noites de inverno. Enquanto se manteve longe de mim, as cores da vida tornaram escuras manchas que se espalham como mãos negras pela parede, mas continuo sendo o desconhecido de olhos desconfiados acusado de ser controlado por forças do abismo... ninguém me vê como o ser humano que sou, pelo mesmo ar que respiro ou pelas costas de um pássaro sem asas... um estranho me tornei quando tudo o que tento ser é esquecido. São nessas horas que busco um sentido para abrir os olhos pela manhã e fechá-los quando a madrugada se resume ao som da chuva. Um parasita vivendo fora dos sonhos e da realidade, então, para quem irei gritar minha voz rouca e falha, sem forças, onde é que estou, se não para você? O meu você poderia valer mais do que uma única pessoa, mas estas palavras se destinam somente a mim... dos meus olhos cansados que nada saem, estou tão seco que a dor é algo que se manifesta com abandonos repentinos, o jogo mortal e suas cartas, as mulheres de dias luxuriosos que me fizeram reconhecer quem realmente eu era.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A Perdição da Aurora

     A doce canção de sua voz ainda soa em meus ouvidos, incrivelmente suave e morna como o calor de noites de verão. O leve aroma do seu cheiro ainda escorre pelos meus cabelos e desce pelo meu corpo como uma cachoeira jorrando toda sua gratidão aos rios. Pela maior parte do tempo e de todos os dias frios que se passaram, das palavras que saíram da minha boca ou de tudo o que fiz para nos manter unidos ao laço do amor, vejo que meus erros valeram mais do que todo o meu esforço e a verdade era mais clara do que raios de sol invadindo o céu ao meio-dia. Da mesma forma que uma alma nasce, ela se vai ao fim dos seus dias, mas com toda a imperícia de seus atos e ciscos que ficam para trás, das conversas ao longo da madrugada ou dos olhares que derretem o coração, dos lugares e das noites, dos risos e dos toques, tudo fica na memória. O que nos faz se sentir vivos são essas lembranças, por que são elas a nossa história, e adiante o que vem cobre o brilhante esquecimento. Assim, sua última canção soava para “tirar o fôlego”, sua riqueza e seu orgulho fizeram de você o oposto do que era e seus olhos encontraram novos caminhos belos como pinturas. Eu me tornei uma formiga para que você pisasse e uma sombra nas arvores para que você pudesse atravessar. Sua perdição começou no momento da sua ida, mas suas escolhas e palavras foram cravadas em minhas mãos, o seu espírito o brinquedo de meus segredos noturnos. Esta noite você conhecerá o pavor que antecipa sua alvorada, o vulto que te persegue na calada dos sonhos e o caminho que preparei para sua perdição.
    Naquele dia passeava eu pelas ruas frias do único lugar gelado da cidade, caminhava como quem anda só por andar e meus olhos pareciam cansados. Avistei tão longe e de maneira frívola o que não pude deixar de olhar, estranhamente seguia aquelas donzelas que pareciam temer o desconfiado homem que as perseguia, mas então você apareceu. Seus cabelos eram louros como a luz que se lançava contra nós, seus olhos, um hortelã prateado, sua voz, um coral de anjos esvoaçando suas asas. Naquele dia eu conheci você e não entendia como sua luz brilhava tanto quanto a lua: as chamas do seu desejo enchiam as sombras à minha volta. Depois de algum tempo voltei a te encontrar na mesma noite, e embora fosse uma evanescente despedida, foi o novembro que deixamos as diferenças de lado e entramos na vida um do outro. A partir de então nossos espíritos se conectaram a tal ponto que os meses não eram suficientes para derroga-los, porém eu não notei que os meus dias não passavam.
    A cobiça que me corria por você desfazia tudo na minha rasa índole e as raízes do chão acorrentavam os meus passos adiante; eu me perguntava o que era aquilo, quando a paixão que sentia por você tornou-se como montes de oliveiras sendo devoradas pelo fogo puro da verdade, e embora sem volta, nada podia me afastar da sua luz... uma obsessão pecaminosa que fez-me buscar os poderes da noite para beber um pouco mais da sua intensa aurora. Chegando a hora, seus pensamentos foram dominados pelo meu coração negro e suas noites inquietas abriram-te a visão da escrita, mas nunca pude acreditar que tudo o que você sentiu foi obra da minha escuridão. O seu orgulho era duro como pedra, mas por seus lábios eu ouvi doces e eróticas palavras que desapareceram como uma chuva passageira que molha no intuito de deixar a vontade. Seus sonhos comigo eram vazios e seus planos ocos como seu medo, eu nunca pude entender como uma mulher tão esperta e volúvel era estreitamente melancólica a tal ponto de desistir do que era verdadeiro por algo vivido nas imaginações de seus próprios devaneios cheios de mágoas e encantos passados. Mas foi ali, depois de um profundo beijo desajeitado, de medos ligeiros e risos levianos, que você tomou sua escolha. No fim, todos os impulsos e desejos caóticos de levá-la para o meu mundo tornaram-se sonhos vazios e sem vida, e falhou-me as chances das trevas corromperem a sua luz.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O Despertar da Aurora

    Para um ser tão temível que antes trazia o aroma de um berço crescendo e amarrado ao seu pequeno mundo, para olhos que escondem de si a minha visão ou para a boca que se silencia ao me ver passar, o clamor da minha insuficiência alcança os seus ouvidos, a dor dos meus erros dilacera seu coração e o beijo das trevas se espalha por todo seu corpo. Desta vez a visita tão esperada retorna, o frio parece tão intenso como a garganta de um dragão de gelo, meu espírito estremece com a sua chegada. Diria foge, quando não há mais como correr, diria grita, quando as cordas vocais já não podem impedir. Ele está aqui e o seu cheiro de escuridão preenche o meu quarto escuro, suas mãos escuras – o frio de todas as palavras destruídas e de todas as cartas enterradas no abismo – tocam o meu pescoço e mesmo porém, não me enforcam. O medo cresce tão subitamente quanto a serpente que se aproxima, mas não o digo somente por palavras, o que sinto na pele é como a sensação de necrofilia com o que esteve morto para os outros e vivo dentro de mim...
    Sobre o meu indescritível sentimento de ressurreição, o que irei despertar hoje à noite não são canções de donzelas felizes ou poemas de folhas douradas no outono, não são estradas para se caminhar durante a alvorada ou parte de uma deleitosa e doce fruta para se comer, o que vem para você esta noite é a única e inexpugnável idolatria ao ser que nasceu no inconsciente malévolo de minha essência, dos segredos que corroem pelas indomáveis veias negras do meu corpo e não precisam mais serem envergonhadas; do indestrutível, indômito e insuperável demônio astral já renascido... seja bem-vindo à sua casa, alma assassina!
    Na silhueta de uma manhã que logo parte, os corvos observam os incautos se aglomerando em sua volta, uma doce mulher, mas melhor é que se atirem de um precipício e o tempo os pare no ar, para que no refletir de suas mentes sonolentas acordem no maior dos sonhos... a vida fora de seus desejos, pecados e pesadelos. A magia destas palavras é tão poderosa quanto um trovão que desce e nada pode pará-lo, porém tão fraca quanto à do seu pensamento, o que significa que sua consciência é a minha força. O jogo da escuridão começa agora e se você souber jogar, venha comigo para um paraíso diferente de tudo o que sempre ouviu, um inferno que é mais puro do que uma romã partida, um vazio preenchido por suas dores e medos e rasgado pela sua liberdade, um monumento que você escreverá seus sonhos e será respondido, o lugar que a dúvida não existirá quando sua alma for sugada pela maldição dos encantamentos ou o túmulo de todas as suas vozes e gritos sufocados. Estou te chamando para morrer, minha intensa aurora, morra comigo e renasça em um universo desconhecido, morra comigo e desperte.

Cronologia