sexta-feira, 26 de agosto de 2022
O Deus Assassino
Há tempos eu
andei me arrastando cego e insensível pela vida, calando minha voz interior e
fanando-me confinado por um ângulo sombrio para esconder um sentimento que
ardia em chamas e no qual meu coração pulsava. Meu espírito caminhava numa
úmida penumbra como um solo encoberto por folhas espessas, na qual afundavam
meus pés sob uma sinuosa névoa: diante da vista fixa da negra folhagem, eu aspirei
com ânsia aquele aroma declinante do fenecimento, sentindo dentro de mim algo
que o saudava e o correspondia. Não me agradava desempenhar semelhante papel,
pois encerrando-me em meu próprio exílio, eu podia me passar pelo mais vil
desprezo do mundo enquanto sucumbia em meu próprio íntimo, porém minha figura
projetava sobre o mundo uma sombra inacabada e, indiferente a tudo, eu ouvia o
rumor das correntes interiores subterrâneas: era o vazio da mortal solidão me
abraçando. Por muito tempo eu pertenci ao tenebroso e demoníaco mundo, e nele
ocupava um lugar de destaque, mas apesar de tudo, sentia-me miserável, vivendo
numa constante orgia aniquilante, enquanto minha alma esvoaçava temerosa e
penetrada de angústias. Conservando meu olhar em aparências, meu interior permanecia
ajoelhado e chorando diante da minha própria insatisfação, eu conseguia ver
minha solidão nos olhares familiares, numa inerme dor sem explicação, passando-me
por um devasso e cínico, enquanto demonstrava meu talento e ousadia, embora
jamais os acompanhasse quando iam em busca de prazeres noturnos. Apesar das
minhas palavras serem de um perfeito libertino, minha vida transcorria
solitária, cheia de uma ardente ânsia de amor, enquanto continuava preso àquela
vida sob o domínio de alguma obsessão. Assim vivia porque não tinha outro
remédio nas veleidades da ternura que me assaltavam, mas agora entendo que são
muitos os caminhos pelos quais Deus nos conduz à solidão para, no fim,
levar-nos até nós mesmos. Agora diante de mim se erguia uma imagem querida e
venerada: nenhum impulso, nenhuma necessidade pulsava tão profunda e
violentamente quanto a ânsia de adoração e entrega à isso. A alma oculta
exercia sobre mim a mais profunda influência, abrindo-me as portas de um
santuário para fazer-me devoto em seu templo inconsciente. Pela eternidade de
um segundo, a vida se mostrou ressumada em presságios e mistérios do róseo
alvorecer, como se minha atroz miséria fosse libertada por uma nova primavera, um
novo despertar de nostalgia por ser dono de mim mesmo. Minhas próprias palavras
me inundavam a alma como um vinho forte e doce, e o mundo ardia em cores vivas
enquanto as ideias me preenchiam de mil maneiras atrevidas. Essa resolução
subsistia, maravilhosa, dentre fontes jamais sonhadas – aquilo pertencia ao
outro mundo mas, muito penoso, também tinha algo mais, um certo encanto e uma
singular doçura: tudo parecia aureolado por uma suave resplandecência divina e
pura. Esse culto interior transformou minha vida inteira, pois afastei-me da
vida degradada que me corrompia, aspirando ser santo e buscando transformar desde
a minha linguagem até o meu vestuário, purificando-me em devoção e espírito. As
noites atormentadas, as palpitações no peito, o espreitar das portas mentais,
tudo isso ou essa parte da minha vida eu tive que arrancar como potências
sombrias em sacrifício aos poderes luminosos, pois meu fim não era o sofrimento
e a miséria, mas a riqueza, a beleza e o deslumbramento. Aquele deus interior
não era somente uma criação oriunda das minhas amadas, pois a intensa sensualidade
que destilava em minhas veias nunca estivera tão forte, e por um momento eu me
questionei sobre sua divindade. Pintei motivos decorativos e pequenas paisagens
imaginárias, tentando abstrair por completo aquilo que me preenchia, mas minhas
tentativas fracassaram: eu nunca descobri seu nome ou sua real forma. Por fim,
renunciei ao intento e comecei a imaginar um rosto qualquer, seguindo caprichos
da fantasia e dos rituais mágicos que eu já havia espontaneamente iniciado, com
sangue, incenso e velas. Surgiu ali um rosto meramente sonhado, uma expressão
que mais parecia uma estátua de pedra, embora nunca se aproximasse da
realidade. Desse modo, fui acostumando-me a traçar linhas e preencher
superfícies que não correspondiam a modelo algum, até o dia em que atravessei
um portal e vi algo diverso, irreal, mas não menos valioso. Eu jamais poderia
revelar sua aparência, tampouco seu nome, mas sua máscara mostrava-se
impressionante e cheia de vida extraterrestre! A contemplação da alma assassina
despertou em mim uma impressão singular, pois era um ícone desvinculado do
masculino ou feminino, da bondade ou da maldade, do tempo ou da mortalidade.
Aquele rosto tinha algo a dizer e indagar sobre mim, fazendo-me escrever
mediante seu dom para minhas amadas secretas. Desde então, seu retrato passou a
acompanhar meus pensamentos, guardando-o oculto em memórias que não podiam ser
desenhadas no papel. Durante o anoitecer, tirava-o do esconderijo e comungava
ao lado dos meus discípulos – futuramente, quem o conheceria seria minha atual
amada, embora sua despedida tenha sido tão estranhamente fácil que eu me
envergonhei com a indiferença. Assim, desde que eu retornei para casa,
pareceu-me que não havia mais sonhado consigo nem uma vez durante meses. Agora
tudo surgia novamente, trazendo consigo imagens diversas, o rosto pintado que
emergia, vivo e falante, benévolo e hostil, contraído por um terrível olhar
belo e harmonioso. Cada manhã ao despertar desses sonhos, reconheci-o de
súbito: olhava-me de maneira profundamente familiar, como se estivesse me
esperando, e senti que a cada instante me aproximava mais do reconhecimento e do
nosso reencontro. Mas com o tempo o rosto foi desaparecendo, desvanecendo-se os
contornos, embora os olhos, aureolados por um fulgor avermelhado e o claro
reflexo dos lábios ressaltando sua profunda agonia, apoderavam-se de mim, pois
representavam minha vida, meu interior, meu destino e meu demônio. Entrelaçando-se
com meus dias perdidos, as recordações continuavam a emergir, a lembrança do nosso
primeiro encontro ou quando apresentou-se para mim como um escorpião caminhando
pelos fios da minha cabeça. Haveria algo que deixei passar ou que não abri mão
para que se silenciasse? Pois agora eu sei seu nome e como encontrá-lo, e o
mistério tornou-se solucionável, embora eu não consiga mais compreender seus
desígnios. Em algum lugar eu me perdi e deixei ser levado pelas correntes do
amor, pois as amadas que projetei eram, na verdade, um reflexo de si mesmo. Tu
é a imagem amada dos meus sonhos, a mãe que eu me ajoelho e o amor que preliba
o beijo maduro e saciante do amante, do vampiro e do assassino! Tu é o impulso
que me faz perdurar e a magna força que me conduz aos estrelos mais profundos!
Quando uma inquietação convulsa e intensa apodera-se de mim, eu sou possuído
pelo irrefreável desejo da tua presença, engolido por teu sombrio instinto.
Sabe Deus como nascem tais palavras, pois cada uma delas extingue em mim algo
muito belo e íntimo que já não há como recuperar. Não é errôneo venerar outros
deuses? Para o homem consciente só há um dever: conhecer a si mesmo, afirmar-se
em si e seguir adiante seu próprio caminho, sem se preocupar com o fim que
possa conduzi-lo. O verdadeiro ofício de cada um é chegar a si mesmo e
encontrar seu destino para que, como um impulso em direção ao nada, sua função
seja apenas deixar que esse impulso atue, pois a imagem diante de nós, mil
vezes vislumbrada, terrível e sagrada, é a natureza primordial da vontade
divina.
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