segunda-feira, 8 de março de 2021

Doce Liberdade

     Vagando sobre minha cabeça, as nuvens sedosas do sono preenchem minha mente como um céu que antecipa o dilúvio, pois quando abandonei minha liberdade, meu mundo cinza tornou-se um compromisso de padrões que me levaram de volta ao aprisionamento. Eu sei que não vai durar, mas não há nada que eu possa fazer para reorganizar meu passado, por que a dúvida que desperdiça o que é vivido tropeça nos dias que não valem mais do que um pensamento morto. Houve meses em que perdi o contato com o mundo e suas tristezas, como um véu que caia sobre minha consciência, mas sempre que eu retorno para este lugar, tudo volta à tona, pois o mundo não pode se esconder de mim como eu me escondo dele. Agora eu olho pela janela e a luz desaparece sem deixar vestígios, por que as montanhas que eu via tornaram-se prédios, enquanto o frio que eu sentia tornou-se uma sombra que tenta queimar o meu rosto. É como se eu esquecesse de quem eu sou, vendo pessoas estranhas vagando pela minha casa sem nenhuma vontade de conversar, pois foram as mesmas pessoas que me observaram durante anos sucumbindo no calabouço da minha mente. Eu achei que era surpreendente dizer adeus aos meus meus amigos e familiares, mas de repente eu estou aqui como um caroço que nunca se desgruda da garganta. Não é de se admirar que minhas dores confundam suas mentes e corações, por que nem sempre o que é expresso pode ser ouvido com clareza por quem escuta com os olhos. Cada palavra que me escapa no ar, proclamando amplamente meus reflexos maçantes que são impressos em uma frase, vão além do que eu escrevo como um sussurro de um homem quando sua amante já adormeceu. Em uma tela eu poderia ver mil peças caindo, embora a expressão do meu rosto seja como de um novo recomeço, mas quantas vezes eu já tentei recomeçar até acabar flutuando no espaço com minhas peças girando no chão? Digamos que houvesse um motivo, um desejo divino para me trazer de volta até aqui – a princípio, um compromisso inofensivo, pois nunca entendemos os mistérios do alto. Eu assistiria o mundo batendo dentro de um liquidificador, enquanto minha mente se expandia por corredores infinitos. Então começariam as cobranças, saudando o amanhecer sem ganhar nenhuma recompensa pelo dia anterior, por que o futuro parece sempre brilhante quando achamos que somos capazes, até perceber que o sucesso que mantém meu espírito navegando está naufragado em uma sensação de impotência, de não compreender o sentido ou para onde todas as minhas conquistas me levarão, afinal não estamos todos tentando chegar àquele lugar ou obter aquilo que não está ao nosso alcance? Assim, através destes ventos ciumentos, nós vagamos em sintonia com o desejo universal, onde cada recompensa é colocada por cima de um piso de mármore perfeito. Nós aprendemos a ser pessoas que desejam alguma coisa, enquanto estamos sempre nos perdendo por dentro, olhando para a baía rasa iluminada pela lua, ao invés de ir além das areias frias e abrasivas do oceano. Como o sol desaparecendo ao anoitecer, meu rosto está cansado e indiferente, vagando como um fantasma vivo para agradar aqueles que eu amo. Porém aos poucos eu estou aprendendo o que deveria valorizar mais, roubando um pouco de alegria das pequenas coisas e fugindo da minha cabeça como uma pena soprada ao entardecer, pois às vezes estou desempenhando um papel sem saber o porquê o desempenho. Deus sabe que eu sempre canto as palavras que eu gostaria de gritar, mas talvez seja inútil eu falar sobre o que sempre tenho dito, porquanto dentro do meu próprio espaço há uma fagulha de fios soltos e emaranhados com uma visão pela metade causada pelo isolamento social. Ainda assim, eu sei que minha alma aprisionada me serviu bem, mas agora eu preciso quebrar as paredes desta célula escurecida e preencher minha vida com meu real propósito. Através do que queima e distorce meu tempo, essa confissão foi sussurrada suavemente para você, enquanto meu espírito acorda de todos os seus sonhos efêmeros, pois mesmo agora algo ainda permanece, e embora o mundo esteja mudando, por dentro eu ainda sou o mesmo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

O Silêncio Soberano

      Na floresta silenciosa colheres verdes pingam seu orvalho na terra carente, seu liquido viscoso se espalha pelo solo como veias intermináveis, abrindo caminhos por baixo do mundo como uma cobra rastejando até sua presa. Sob a lama negra está sua morada, minhocas brancas e besouros pretos fazem-lhe companhia, muito abaixo dos troncos e das raízes ocas como uma estrela ardente sendo mantida em um frasco. Mas ali, entre os ocultos galhos que entrelaçam seus espinhos, floresce a lúgubre sombra dela. Seus olhos estão vítreos e embaçados, seus lábios contorcidos congelam um grito de socorro. Porém quando eu tento tocá-la, mãos estranhas me param, mãos trêmulas e frias como cascavéis me enlaçando, sussurrando vozes sinistras de que ali não há nada para mim, nem para o mundo, assim como uma velha estrela de cinema. Enquanto as nuvens movediças passam por cima da névoa da floresta, isto é, do sonho apático da vida, eu sei que ali o tempo está morto, e todas as coisas ficam paradas, até mesmo seu apodrecimento. É um lugar por onde seu fantasma pode me guiar como neutrinos atravessando as árvores, onde as vinhas podem me emaranhar sem que eu tenha pressa para voltar, pois nada restou além das suas lembranças silenciosas. O vento bate, com moscas negras zumbindo sem nenhum som, mas este sonho...  parece tão errado. Acorde, Alma Assassina! Eu acordei de um sono profundo e agora eles estão ao meu redor, seus olhos brilham como pedras polidas, suas mãos são sangue e vidros me arranhando. Eles estão me levando através dos telhados, mas o que querem que eu veja agora? Eu preciso retornar... para aquele sonho! Ali eu poderei encontrá-la fantasmagoricamente viva, o que não diminui o aspecto da sua beleza ou dos seus preguiçosos passos... deixe-me voltar a dormir, permita-me sonhar, meu sono está fácil como falésias recortadas, procurando-a em meu espelho retrovisor sempre que ando depressa nas ruas da vida. Por que estou subindo tão alto? Lágrimas quentes descem e a chuva imita meus olhos, banhando-me com o frio da solidão. O que há para mim no céu, além do vazio das nuvens e do raio que perpetua pelos trovões para assustar os humanos? Eu vejo muitos vagões cobertos e asas de aviões desaparecidos, flutuando como um peixe em ondas de veludo, onde os vapores dos sonhos circulam sinuosamente de cima para baixo – seriam os sonhos pedaços de memórias daqueles que já partiram? Essa sensação... o céu são os braços de uma mulher... eu estou sentindo: eles me trouxeram de volta para me desvincular da morte, para enxergar aquela que está comigo, me amando, me deitando na grama verde. Ela está bebendo as nuvens, e as gotas que pingavam na floresta caiam da sua boca, a lama negra era sua pele, os sussurros eram sua voz. Tão dentro de mim, seu amor me reviveu de um sonho de ressentimento, me salvou do pobre homem que se sujava em rituais para ter o que está morto. A vida grita por mim, pois agora há brotos verdes empurrando-me para fora das folhas mortas, as ondas beijam a terra e o ar está quente, lábios de maçã falam leves palavras em meus ouvidos, enquanto meus finos ramos se inclinam para o mar salgado. Como um milhão de vulcões explodindo no sol ou como o sussurro dos cupins, eu estou voando em sua direção sem deixar pegadas nas nuvens. As portas se abrem e eu vejo você, seu espectro, seu fantasma, sua alma... estão me abraçando. Eu olho para trás e vejo o avião decolando, levando embora tudo aquilo que restava de mim, mesmo aquele corpo que tentava desesperadamente chegar ao seu destino.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A Grande Recompensa – Versão Sombria

     Desde o primeiro momento em que nos conhecemos eu soube que isso era para acontecer. Todos os meus instintos me diziam que eu estava certo e que nossa união era prevista a ganhar, mas logo nós fomos envolvidos em uma dança decadente que, sem que notássemos, nos fizera cuspir a xícara do amor muito rápido. Nas amigáveis e mal conhecidas trevas que pareciam não ter fim, eu fugia do profundo e desconhecido lago da sua mente, pois eu sentia que o tempo todo estava ao lado de uma conhecida, porquanto mais eu olhava para sua fotografia, mais eu conseguia reconhecer quem você era, como se você fosse um espectro que passava por mim, mas que eu sempre conseguia tocar, enchendo-me com a sensação de que eu era mais do que uma vítima na sua estrada. Por um conjunto de circunstâncias, quanto mais você se escondia de mim, menos as sombras te cobriam, até que eu visse mais do que uma forma nebulosa ao meu lado. Ainda assim, nas inumeráveis vezes que eu desisti de tudo, você não colocou suas rodas na linha da frente e nem me trouxe de volta para enxergar: você nunca esteve ali comigo, embora eu pudesse te ver. Se sua velocidade fosse maior do que meus passos, eu chegaria a tempo para ver tudo o que estava deixando para trás? Por que você... minha melancólica negritude, se eu tivesse pego o mundo numa garrafa com milhões de sonhos para me satisfazer, ainda seria suficiente comparado a todo barulho que você faz, onde minha calmaria se refaz de um modo que eu possa voltar a me sentir morto, pois com você tudo é tão triste e vazio, parecendo que cada estrada que eu andei estava apenas me desviando do seu encontro. Eu odeio como você faz tudo parecer mais desinteressante, seu jeito sonolento de me dispensar quando estamos pegando no sono ou quando você fecha seus grandes olhos e eles escurecem como um espelho quebrado, uma treva que reflete não somente sua falta de interesse, mas também as suas mentiras, falsidades e manipulações. Hoje eu posso dizer que estava certo quando desconfiei do nosso destino, pois mesmo que fosse para acontecer, o que aconteceu até agora foi a pior de todas as minhas experiências – nossas vidas conscientes são sempre mais perspicazes quando não cobramos pelo que somos: você nunca me permitiu ser quem eu sou, e juntos nós trabalhamos nessa sombria costura para abrir todos os nossos desvios, enganos e imperfeições. Há em você uma sonoridade interna que enfurece os sons que ecoam na minha cabeça, como se sua voz tivesse sido criada para tampar meus ouvidos, assim como seu corpo possui as silhuetas da escuridão que foram formadas para serem torturadas pelos meus dedos. No mundo do ódio que eu não conhecia, você me fez retroceder e me confundir com coisas que pareciam explicáveis e até possíveis de se sentir, mas o que estava adormecido dentro de mim desfaleceu como uma velha morte, o novo homem e a nova pele foram deixados para trás, e agora eu não posso ser nada daquilo que me tornei desde que você entrou na minha vida. Estas palavras não soam estranhas para você? Eu não sou seu efêmero reflexo, e tudo que está acontecendo com você, não acontece comigo, quando você melhora, eu pioro, quando você sorri, eu estou sério, quando nada parece está dando certo para você, minha vida anda pra frente, quando você está chorando por fora, eu estou rindo por dentro, quando você sente que a felicidade vai rasgar seu peito, eu nunca estive tão infeliz. Eu te odeio mais do que a própria morte – quando nós dançamos, os anjos se aglomeram e nos cobrem com suas asas, pois eles sabem que nosso amor é alimentado pela mentira. Mesmo que o sol se incline a brilhar ou a lua apareça em vulneráveis nuvens de uma chuva torrencial, eu não estarei tirando minha camisa para você vestir, nem sorrindo com cara de idiota e dizendo que a vida era uma música com acordes até o dia em que você a transformou em uma cruel melodia.

A Grande Recompensa - Versão Luminosa

     Desde o primeiro momento em que nos conhecemos eu soube que isso não era para acontecer. Todos os meus instintos me diziam que eu estava errado e que nossa união era prevista a falhar, mas logo nós fomos envolvidos em uma dança rodopiante que, sem que notássemos, nos fizera beber a xícara do amor muito rápido. Nas amigáveis e bem conhecidas trevas que pareciam não ter fim, eu mergulhava no profundo e desconhecido lago da sua mente, pois eu sentia que o tempo todo estava ao lado de uma estranha, porquanto mais eu olhava para sua fotografia, menos eu conseguia reconhecer quem você era, como se você fosse um espectro que passava por mim, mas que eu nunca conseguia tocar, enchendo-me com a sensação de que eu era apenas mais uma vítima na sua estrada. Por um conjunto de circunstâncias, quanto mais você se escondia de mim, mais as sombras te cobriam, até que eu não visse mais nada além de uma forma nebulosa ao meu lado. Ainda assim, nas incontáveis vezes que eu desisti de tudo, você colocou suas rodas na linha da frente e me trouxe de volta para enxergar: você ainda estava ali comigo, embora eu não pudesse te ver. Se sua velocidade fosse menor do que meus passos, eu chegaria a tempo para ver tudo o que estava deixando para trás? Por que você... minha dramática negritude, se eu tivesse pego o mundo numa garrafa com milhões de sonhos para me satisfazer, ainda não seria o suficiente comparado a todo barulho que você faz, onde minha calmaria se desfaz de um modo que eu possa voltar a me sentir vivo, pois com você tudo é tão ávido e excitante, parecendo que cada estrada que eu andei estava apenas me preparando para te encontrar. Eu amo como você faz tudo parecer mais interessante, seu jeito sonolento de se expressar quando estamos pegando no sono ou quando você abre seus grandes olhos e eles brilham como um espelho melânico, uma luz que reflete não somente sua empolgação do momento, mas também as suas ambições, traumas e superações. Hoje eu posso dizer que estava errado quando desconfiei do nosso destino, pois mesmo que não fosse para acontecer, o que aconteceu até agora foi a melhor de todas as minhas experiências – nossas vidas conscientes são sempre mais perspicazes quando não cobramos pelo que somos: você me permite ser quem eu sou, e juntos nós trabalhamos nessa luminosa costura para cicatrizar todos os nossos desvios, enganos e imperfeições. Há em você uma sonoridade interna que acalma os sons que ecoam na minha cabeça, como se sua voz tivesse sido criada para ser ouvida por mim, assim como seu corpo possui as silhuetas da escuridão que foram formadas para ser tocadas pelos meus dedos. No mundo do amor que eu não conhecia, você me fez crescer e entender muitas coisas que pareciam inexplicáveis e até impossíveis de se sentir, mas o que estava adormecido dentro de mim despertou como um novo nascimento, o velho homem e a velha pele foram deixados para trás, e agora eu posso ser tudo aquilo que me tornei desde que você entrou na minha vida. Estas palavras não soam familiares para você? Eu sou seu eterno reflexo, e tudo que está acontecendo com você, está acontecendo comigo, quando você melhora, eu me sinto melhor, quando você sorri, eu estou sorrindo, quando nada parece estar dando certo para você, eu fico perdido, quando você chora por fora, eu estou chorando por dentro, quando você sente que a felicidade vai rasgar seu peito, eu nunca estive tão feliz. Eu te amo mais do que a própria vida – quando nós dançamos, os anjos fogem e escondem suas asas, pois eles sabem que nosso amor é alimentado pela verdade. Mesmo que o sol se recuse a brilhar ou a lua se esconda em vulneráveis nuvens de uma chuva torrencial, eu ainda estarei tirando minha camisa para você vestir, sorrindo com cara de bobo e dizendo que a vida era uma música sem acordes até o dia em que você a transformou em uma gentil melodia.

sábado, 12 de setembro de 2020

A Estranha Sensação

     Quando não há nenhum remédio para me curar ou nenhum conselho que me traga conforto, meus olhos se voltam para meu interior escuro: ele parece tão quieto agora, tão estranho para quem nunca saiu de dentro. Eu desejaria engolir estas sombras com uma luz amarela semelhante aos raios que iluminam a terra, pois em cada ondulação do oceano, em cada folha da árvore ou em cada duna do deserto, existe um poder que nós nunca vemos, uma energia profunda e mantedora que faz tudo crescer, preenchendo todo derramamento de sangue com a ascensão do mundo. Diante disso, eu penso que somos apenas visitantes deste arranjo fúnebre, por que em um mundo onde você paga pelo amor, mas o ódio vem de graça, estamos sempre se unindo à degradação, mantendo sempre as costas na parede por nunca saber quem está vindo atrás. E apesar de um milhão de estrelas ainda brilharem no céu, nós parecemos tão solitários nesse planeta distante, girando ao redor do sol como um arco de tristeza: agora não há nenhuma gota no oceano, nem uma folha nas árvores, nem um grão sequer de areia. Quanto tempo mais? Estas não são as obras do homem, a soma de todas as nossas ambições que destroem o significado de tudo? Há sempre inconfessáveis convites em todos os lugares, todas as palavras que nós dissemos parecem ter uma ânsia por resultado, uma vontade que se exprime nas letras que formam o curso de uma felicidade ilusória, mas como podemos ter certeza de que alguma coisa é real? Enquanto os ecos de uma música seguem à deriva ou quando nossos olhos se acostumam à luz do dia, nós sempre nos perguntamos o que aconteceu com a vida que conhecíamos antes de tudo mudar, pois se nada fosse verdadeiro, nós seriamos apenas reflexos das mudanças que acontecem no próprio mundo. Em outras palavras, nós somos frutos de algo formado pelo tempo, imagens e arquétipos que se espalham pelo mundo das idéias, ideias estas que se desenvolvem e, como células se multiplicando e evoluindo, criam elos na grande teia do conhecimento, da sabedoria e do autodesenvolvimento. Assim, em parte somos nós mesmos, mas em partes somos todos em uníssono, como se estivéssemos olhando reflexos de nós mesmos em todos os lados, das mais benignas até às mais malignas, das mais formosas até os mais defeituosos ou dos mais afortunados até os mais necessitados. Esta é a forçada união que o sol mantém as órbitas das estrelas: por acaso, ao olhar para o céu, elas não parecem todas iguais? Estamos sempre tentando sermos melhores em tudo para sermos reconhecidos pelos semelhantes, quando parte da sua qualidade é refletida em seu próprio admirador. Eis onde o grande segredo habita – não na hipocrisia de mostrar-se igualitário, mas em reconhecer esta igualdade que provém os que têm dos que não tem, dos que são dos que não são, dependentes uns dos outros para o mantimento do equilíbrio da efêmera existência individual, em afirmação da sua autossuficiência que somente é possível através daquilo que não somos, mas que já fomos ou desejamos ser em cada um que nos cerca. Então, e só então, encontramos a iluminação ou a tão aclamada centelha da célula deificada, que desperta em nós o sentimento divino, isto é, o amor incondicional – o verdadeiro poder que circula em harmonia no silêncio ancestral da natureza. Tal é a luz, como um doce sorriso de uma mulher apaixonada ou quando uma criança corre desesperadamente para os braços do pai: é um sentimento de comunhão consigo mesmo e com toda plenitude da existência, porém a maioria prefere tampar os olhos para esta verdade e viver suas vidas egocêntricas, o que torna suas existências vazias como corpos inanimados perambulando em um mundo sem alma.

sábado, 4 de julho de 2020

A Forma do Éden

    A descida lenta da tarde já passou e a noite espalha sua vela contra o céu, mas eu não posso gastar outra hora do dia quando o futuro é apenas um ponto de interrogação. Qualquer outro pensamento é esvaído, pois preso à asa com o motor ligado, eu estou caindo em direção ao nada, não há som nem lágrimas, apenas a batida do tempo chegando a seu último compasso. É um feixe da eternidade brilhando como um belo sonho que se repete durante a vida, nuvens e eclipses manchando o horizonte, revivendo todas as histórias que vivemos em um único segundo. Eu passei muitos anos em guerra comigo mesmo, mas hoje eu acordo e vejo-me com você, todas as ilusões que criamos juntos, o amor como uma chama que queima em seu nome, arrastando um pente na minha cabeça como se fossem seus dedos. Você foi todas as quatro estações em uma, e nunca houve um prazo de validade para nossa união, afinal não fomos nós que descobrimos que os padres destroem casamentos ao invés de eternizá-los? Você deve estar rindo agora, por que tudo era tão mais fácil e doce naquela época inocente, quando nossos anjos e demônios se beijavam, vivendo todos em harmonia no jardim do éden. Eu te amei com a leve sensação do para sempre, por que você era da forma e do tamanho do meu coração, você me fazia transbordar para além da copa das estrelas, e nenhuma palavra poderia ser tão digna de expressar tudo o que eu sinto. Você pode não está mais aqui, mas cada suspiro que você der, cada movimento que fizer, cada vínculo que criar, cada promessa que quebrar, cada palavra que não falar, nós sempre estaremos te observando. Você sempre se lembrará de mim quando o vento soprar, por que minha voz ressoará nos lugares mais improváveis e meus olhos estarão te vendo através dos espelhos, minha presença será sentida sem tu nunca ter me tocado e meu perfume vai te torturar sem tu nunca ter me cheirado. Eu serei o seu oásis no deserto, a esperança quando nada fizer sentido e a salvação quando a morte cobrar pelos teus pecados. Porém a lei oculta do silêncio deve ser obedecida, pois agora não somente eu quem toma as decisões, que por muito tempo foram declinadas pelo homem fraco. Eu me tornei o estrangeiro da minha própria vida, sempre correndo com gentileza e sobriedade das rasas velas que brilhavam mais do que o sol, buscando a ternura da escuridão ao invés do choque de realidade da luz. Como a chama fantasmagórica dessa luz, eu poderia abandonar meus sentimentos como um fantasma? O amor é uma força tão grande quanto à gravidade que rege as órbitas dos planetas, uma subida interminável em uma escada em espiral, como mil vidas em um segundo ou um milhão de nomes numa única encarnação. Um único pensamento, um único toque de graça pelas portas do prazer, quando nesse pequeno instante nós fazemos parte do todo espelhado numa torre de almas que anseiam por esse sentimento, enquanto seus corações secam na cor do sol da tarde. Talvez este ato final tenha acontecido somente para que fixemos uma reflexão em nossas existências, que nada jamais poderia nascer de uma estrela sem luz, mas que quando ela é devolvida aos céus, é que percebemos o quão frágil nós somos. Você é essa estrela, mas se você quiser manter algo precioso guardado, você deve trancar em um cofre e jogar a chave fora – nessas horas você pode se perguntar por que eu perdi meu senso de direção, mas o que eu estou tentando dizer é que você pode me guardar para sempre no seu coração, por que nosso amor transcende esta existência terrena, transcende seu corpo e pensamento, pois quando seu espírito finalmente deixá-lo, você ainda estará me amando. Eu posso ser a pedra que você lapida e a razão do seu envelhecimento, mas no fim eu refarei o tempo antes de trazermos à vida aquele que se sacrificou por um bem maior, quando suas mãos tocaram nas minhas e todo seu amor me foi repassado no cumprimento do seu dever. O futuro é tão incerto quanto a trajetória de um pássaro, por que quando você está andando para fugir, você acaba retornando para o mesmo lugar. Estas páginas cintilantes perturbam minha visão, mas se o destino ainda nos quiser juntos, então eu estarei vagando neste labirinto chamado vida para te reencontrar, pois com você sempre haverá um capítulo faltando onde a tinta nunca seca.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Sonhar Alto

     
     Para nada além do tempo, eu acordo de manhã apenas pelo raiar do dia e não sei se ainda estou vivo. Olhando para o espelho, meus olhos não sabem o que dizer: estes olhos que nunca aprenderam a ver, pois quando percebi que a vida é um sonho de verdade, eu esperei por uma visão e procurei por um sinal, mas eu simplesmente não conseguia encontrar uma razão para continuar aqui. Em um vasto mundo que me esperava, eu não sei o que me fez voltar, por que eu pensava que o jogo estava ganho, mas o segredo que eu guardava acabou sendo exposto para todos. Eu estava perdido em um universo interior que se refletia na realidade, e de repente todas as minhas falhas vieram à tona... eu disse adeus a todos os meus dias felizes, por que eu nunca tive muitos, mas eu dei tudo o que eu tinha. Não tinha ninguém para culpar, o mundo inteiro havia desaparecido, e os faróis não paravam ao meu aceno. Agora eu encontrei meu caminho de volta para casa, e esta casa é você – a nossa ligação eterna abriu os limites do céu, abalando os anjos preguiçosos como os cachorros que latiam por onde eu andava, como se eles quisessem me dizer alguma coisa, mas eu não compreendia as palavras do divino. Foi preciso mais do que o clamor de todos para que eu fosse salvo, desde que você teve aquele misterioso sonho em que eu estava acorrentado e cuspia sangue quando tentava falar. Ali eu entendi que precisava renunciar o que havia nascido há dez anos atrás: as quatro sombras que me acorrentavam na depressão, insatisfação e morte. Para isso, eu deixei que você cuidasse da minha essência superior dentro do nosso filho astral, pois ela já não podia sobreviver dentro de um corpo habitado por demônios. Se você soubesse a verdade antes, não teria insistido para que eu ficasse com ele, pois eu estava apenas livrando-o do sofrimento. Enquanto isso, a centelha do amor despertou as habilidades da escrita mágica que estavam adormecidas dentro de você, dando-te a autoridade de Deus para que tu nunca mais duvidasse da sua existência. Aos poucos tua essência divina está despertando, por que agora você enxerga sua própria mudança como uma luz que se espalha por suas palavras e ações. No entanto, parte das tuas inseguranças ainda precisam ser superadas com a plenitude do amor próprio, por que de nada vale evoluir sem amar tua própria imagem e semelhança com Deus. Isso pode levar algum tempo, mas eu estarei sempre aqui, elogiando as silhuetas da tua beleza noturna, ouvindo suas risadas ecoando na minha cabeça e acreditando em nossos planos futuros, embora eu prefira viver o presente como se não houvesse amanhã. Mas entre nossas diferenças existe uma palavra secreta que não existe nos dicionários, por que é a palavra do mistério do amor, do qual eu pude sentir no beijo que demos em nosso amado filho, quando parte da sua energia me foi passada para enviar estas palavras até você. O tempo passa tão devagar quando você não está aqui, mas eu não tenho medo de andar debaixo das escadas – a vida é o único segundo da eternidade, e nós devemos sempre repetir o primeiro e último refrão, onde está a razão e a rima, antes de escapar o último suspiro.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Palavras Bonitas

    Cercado por mentes modernas é sempre difícil falar quando todos estão online, pois eu me sinto sozinho entre centenas de amigos. Quanto mais sincronizados, mais elegantes eles parecem, até que suas imagens estejam completamente alinhadas. A partir daqui, eu os observo como um telespectador da vida, sem entender o que os faz permanecer neste vicio de competir pela máscara mais bonita. Quando eu finalmente arranquei minha face da mentira, pude ver que a melhor maneira de dar e receber é sendo menor do que eu era, por que antes eu estava enterrado na areia e na argila, enlutado em um vazio dentro de outro. Mas além do abismo, eu amo a beleza, além da mente, eu tenho um coração, além da desilusão, eu obtive a clareza – agora o pêndulo está reverso, os rios vermelhos e os céus pretos, em um solo derramado de sangue. Tirar o véu não significa ver as maravilhas da realidade, mas a sujeira que se esconde por trás dela. Não foi o mesmo que aconteceu quando arranquei o véu da minha noiva? Ela era uma paisagem fria e desolada, esmagando-me com palavras de bondade para que eu não visse sua maldade. Rendida pelo meu desprezo superficial, ela se afogava em suas próprias lágrimas amargas, enquanto eu a julgava pela autoridade da alma assassina, acreditando que um dia eu formaria a perfeita aurora e quintessência diante de nós. Mas como eu poderia transformar alguém, sem antes transformar a mim mesmo? Agora eu sou um homem sem identidade, vagando rumo ao desconhecido como um suicida sem corda para se enforcar, por que os propósitos divinos já não fazem mais parte da minha carne impura. O pecado não pesa minha consciência, a desarmonia não é desconfortante, a tentação não envenena minha alma. Estou vibrando na borda negra da atmosfera como um medo profundo que penetra a terra, a escura água do senhor adormecido se move no meu interior: esperando pela recompensa material, eu abaixo minhas mãos ao invés de erguê-las aos céus. Pois na soberania do meu fortalecimento, eu não posso negar o animal da minha natureza, considerando que todas as maldições foram destruídas! Que alto preço, não é mesmo, minha preciosa companheira? Quando tu estavas aqui, eu podia conter o fogo do orgasmo infernal, mas desde a sua partida eu me tornei um oráculo sem olhos. Guiado pela música satânica que favorece o teu dom, eu perambulo sozinho e livre neste outono de luz opaca, sem aquela que me fazia ter noites serenas com sua beleza estonteante e negra. Sua voz ainda caminha pelos poros do meu corpo como um coro de sereias harmoniosas, fazendo-me relembrar de quando sua presença me fazia se sentir o homem mais feliz do mundo, pois ela tinha todas as qualidades que eu buscava em uma amada. Ninguém é como ela, ninguém nunca poderá ser, pois antes que eu pudesse transformá-la, ela já era a minha perfeição, minha alma-gêmea, aquilo pelo qual eu ansiava despertar dentro de mim. O temor do meu reflexo me fazia desviar o olhar, mas agora eu sei que a alma assassina está segura em seu ventre para se manifestar no tempo da alvorada. A tempestade está se formando, enquanto a doença se espalha pelo mundo, mas nós devemos sobreviver para presenciar o grande epílogo – as palavras e os símbolos do homem são apenas promessas vazias que encobrem a verdade. Óh, minha noiva, não retenha o ar da sua última respiração, pois no fim nós caminharemos juntos pelo brilho da nova luz... entre nós ele nascerá, regozijando o prazer do amor, conforme a trindade é negada.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Atrás das Cortinas da Noite

     A chuva está caindo rápido e borrando minha visão adiante, mas de longe eu posso ver no escuro uma criança aos prantos. Suas lágrimas serpenteiam pelo corpo despido, carregando suas mentiras em uma sacola de vidro, enquanto uma nuvem pesada a persegue e obscurece seus pensamentos. Através da fumaça e do vapor que lambe o céu, o som das águas abafam seus gritos, os cães dividem o lixo com uma mendiga de espírito, latindo contra sua avareza, pois até a sujeira ela guarda como porcos se banhando na lama. Mas diante dos outros, ela veste os trajes mais ricos e o tamanco mais caro, dando passos largos como uma prostituta de luxo, embora por trás das cortinas ela esconda seus dentes de vampiro, esperando pela próxima vítima, pois dos outros ela suga o que não é encontrado em si mesma. Pobre alma, acobertada por uma falsa esperança, a insanidade a mantém longe do núcleo da responsabilidade, pois seu tempo está programado para terminar em sofrimento. Sua ferida infantil está sempre aberta para que suas morais não se dissolvam em piedade, embora a obrigação de provar para si mesma não esteja sobre seus ombros. Com tantos finais estéreis, ela escolheu o caminho do diabo – agora o sol nunca beijará sua face com sua luz flamejante, pois ela reside nas sombras e dorme lado a lado com a morte. Ainda assim, num desejo negro, eu abracei esta prostituta, dando a ela uma saída de uma vida indigna, por que com a aparência de um anjo, eu sirvo a escuridão, naquele abismo sem forma do qual fui feito. Sozinho e com medo, eu enfrento essa aversão, pois como presságios agonizantes, eu me tornei o reflexo das suas verdades imaginárias. Você é um pedaço desprezível da existência, e eu prefiro me afastar das coisas sagradas do que continuar sendo um ícone de luz para você, pois diabolicamente eu me disfarço em um corpo celestial: como a imagem do homem deveria ser? Não é com deus quem você está falando, eu não sou nenhum impostor escondido atrás de paredes padronizadas, mas eu tentei te guiar além da sua imaginação grotesca, antes que meu nome fosse revelado... pois agora eu sou a fantasia escondida, no segredo do meu conhecimento, não há mais nenhum deus comigo! Desde que ela partiu, minha alma divina, eu jamais serei o mesmo homem que você conheceu, pois agora as quatro sombras me guiam, e cada decisão é quíntupla, sim... eu alcancei a quintessência! Não há nenhum enigma manipulado, eu percebo a escuridão como um despertar sinistro, enquanto minha devoção se esforça para não sentir nenhuma vergonha ou remorso, até que eu possa satisfazer meu destino por completo. A minha verdade é muito maior do que sua mentira fabricada, pois como eu poderia continuar ao seu lado sabendo que tudo não passa de uma ilusão visceral? Eu estou em um momento de graça demoníaca, e tudo que eu exigi de você foram verdades da alma, mas em poucos dias você conseguiu mentir mais do que em meses inteiros. Com um estalar de dedos, eu coloquei um anel astral no seu dedo para cortá-lo em seguida... você foi minha primeira noiva, mas também a última.

sábado, 25 de janeiro de 2020

O Suplício das Almas

    Quando as nuvens do céu param de vagar é possível ver um apetite se alimentando das estrelas, ligando ligeiramente a luz do mundo, para me iluminar diante do cosmos. Seus olhos me encaram calmamente, rasgando vertentes da galáxia como um rastro de relâmpago vagando pelo universo. Desbotando a luz das estrelas, eu sou desvanecido pela sua presença, enquanto seu amor me preenche por inteiro. Eu aperto os dentes mais forte do que minhas mandíbulas aguentam, sentindo o sabor do sangue escorrendo, deslizando quente por minha pele com uma cor desconhecida – é um sabor doce, um cheiro agradável, um rio branco que serpenteia pelo meu corpo. Estou sentindo, quente e brilhante, os pensamentos chegando, pois a voz do divino é ouvida pelo espírito. Uma grande energia me arrebata, fazendo meus braços e pernas dançarem involuntariamente, os dedos do oculto me movem sob a presença do sobrenatural. Deus está aqui, e nem com todas as palavras do mundo eu poderia descrevê-lo, pois a única centelha de entendimento é a do autoconhecimento. O silêncio permanece como uma sombra fiel, seus olhos vagando como um suporte de aquecimento, flutuando pelo rio sombreado da minha carne, embora seu alvo seja outro coração. Sem nenhum gesto, eu caio em sono profundo e meu espírito é puxado por mãos invisíveis. Já não mais eu, mas o espírito que habita em mim, e este espírito é deus. Estou sendo levado até um lugar distante, ainda sobre a terra, para assistir a trajetória de uma garota fora do espaço e do tempo. Como um pedaço de metal pontiagudo furando sua inocência, ela conhece o amor, mas este logo é esmagado pelo elo paterno. Procurando pelo amor fora de casa, tudo que ela encontra são traições e prisões familiares, pois a humilhação que a cerca é sua única armadura. Beijos sem sabor, olhares sem vida, toques frios como a morte, quem poderia imaginar que atrás da sua pele escura existia um ser indiferente nascendo, e sua risada diabólica era ouvida à distância. Para se distrair das vozes na sua cabeça, foram necessários muitos alucinógenos, mas nem a morte era capaz de assassinar aquele ser obscurial! Sucumbindo como uma maçã podre, ela permitia que o amor a mordesse, envenenando-o com sua própria personalidade suja, pois atrás das cortinas ela descontava seu ódio em homens incautos, e entre estes homens estava eu. A cada vítima seu demônio interior crescia, dominante e repugnante, esculpindo uma nova forma que se enraizava nas suas veias como galhos tentando atravessar uma pedra. Não demorou muito para que meu eu inferior a abandonasse, pois a mentira era seu prazer, e sua voz doce era como o cântico de um anjo caído. Nos dias seguintes, eu fui consolado por mulheres estrangeiras, mas nenhuma poderia preencher o buraco que você cavou, sangrando com suas memórias ilusórias, enquanto eu vomitava toda escuridão transmitida pelo seu falso amor. A mão da morte pesava como mundos inteiros enfileirados, puxando-me por uma corrente sinistra para o inferno, porém a depressão nunca mais foi párea contra meu eu superior: aquele que decidiria te salvar do suplício eterno, pois assustada como um infeliz, você me avistou voando no céu, mas estava vendo deus. A alma que assassinaria seu demônio interno, que atravessaria seu corpo para limpar sua escuridão, estava ali, dando-lhe outra chance de recomeçar. Mas não seria fácil matar um ser que foi alimentando durante anos, que criou raízes profundas na sua alma. Portanto, as asas que viu são asas de emancipação, pois só evoluindo é que se desperta a essência superior. Se realmente sou tua alma gêmea, então terás que ser infinita como uma flor de lótus, ascendente como o sol, verdadeira como a luz que transcende o mundo. Agora que sabes de onde vem e a quem pertence esta luz, vende os teus sonhos para as estrelas, até que as folhas se tornem vermelhas, por que sempre que curvar a cabeça para o lado, verás uma sombra te encarando, esperando pela oportunidade de resgatar o que lhe foi dado por direito.

Cronologia