segunda-feira, 20 de novembro de 2017

O Profundo Abismo do Eu Sou

    O ontem esconde uma marca no meu peito, imagens distorcidas de um rosto que parecia ser meu, mas que foi esquecido em algum lugar onde só os mortos conhecem. Como um milhão de almas caindo, o céu executa suas estrelas cadentes, anos que se passam além da ampulheta, relembrando os momentos pulsantes de quando ainda me sentia vivo, somente para no fim sentir-se culpado por tudo que deixei para trás. Eu sou o homem que não poderia deixar de responder o clamor dos mortos, mas parece que estou falando comigo mesmo, como se algo me esperasse do outro lado com a mesma intensidade que eu desejo de encontrá-lo. Eis um homem morto andando livremente, o sangue negro lhe foi compartilhado como uma doença que se espalha por suas células, mas ele mantém um segredo escondido: como açúcar, a coisa mais doce que já provara, tornando os anseios sombrios do seu coração em visões queimadas, pois como um fantasma beijando o sol, o calor flui como música pelo seu corpo, trazendo a verdade que ele nunca quis aceitar. Mas este sangue não me pertence, por que o seu dono me vigia de dia e de noite, enquanto seu silêncio é como a primeira neve de cada manhã, flutuando em uma torrente de pensamentos que não consigo entender antes que me sejam revelados. A sua risada de boca aberta resumia meus dias passados, porém é muito raso saber onde eu estava na falta de som – talvez muito cedo para perceber que eu era a pessoa enterrada no chão? Assim, rompendo todos os pesadelos que gritavam dentro da minha cabeça, um trovão escuro iluminou meu caminho, separando meu corpo da mão que estava sobre minha alma, para que eu adentrasse as paredes em forma de vidro, vendo meus lábios e língua sangrando, afinal como um frasco de comprimidos para a idade, eu envelheci em milésimos para chegar até ele, um monstro branqueado como um cadáver de ossos petrificados, mas com uma profunda beleza no olhar, embora fosse dele de onde saía toda minha feiura, corroendo-me por completo como um verme que só se apresenta quando já está morto. A música me mantinha respirando, mas com meus olhos e lábios costurados, o que eu poderia ver ou falar? Tão morto, eu estava tão morto, seria aquele meu verdadeiro reflexo no espelho dos meus olhos? Então eu desenhei um aceno de boa noite, mas já era tarde demais, os assassinos me cercaram com facas e vestidos negros, me apunhalando pelas costas, enquanto aquele cadáver frio se divertia com meu sofrimento, cuspindo sangue pelas orelhas e vendo minhas memórias alimentando sua doença. Eu sabia que não duraria muito tempo, mas eu aprendi muito observando, pois enquanto minhas memórias passavam diante de mim, eu enxerguei todos os meus erros e acertos, todas as palavras ditas e não ditas, todas as escolhas que me levaram a ser quem eu sou e todos os vícios que me destruíram sem que eu percebesse... no vazio de toda aquela imundície, eu pude dizer adeus e obrigado pelo que ele tinha me dado, pois ele era a personificação do que eu tinha me tornado, relembrando-me de como eu era para exterminá-lo com tudo o que ficou para trás. Agora eu finalmente compreendia o seu sorriso: não era de zombaria, mas de orgulho! Foi ali que dei fim ao meu antigo eu, nuvens escuras passavam por mim, mas não havia nada a ser temido, o vale negro de névoa que preenchia meu coração dissipou-se entre as lágrimas de deus, pois enquanto eu dançava com os mortos, eu sabia que também estava entre eles, persistindo para viver um só segundo a mais. 

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