domingo, 3 de junho de 2018
Selvagem
Escondido
da vista, um cão raivoso corre cegamente pela floresta, seus latidos são como
vogais macias que imploram por uma abordagem, mas ele se apressa para chegar onde reside
sua identidade secreta. Agora um homem surge do covil: é muito difícil manter-se
de pé naquele corpo esguio, mas alguém o espera em casa e seu atraso poderia
levantar suspeitas. Alimentando a noite, ele retorna pelo mesmo caminho por
onde veio, pois é mais fácil enganar uma pessoa estando próximo dela do que distante.
Enquanto atravessa as divisões lunares, um pássaro preto se senta, possivelmente o único que sabe quem ele é, mas quem compreenderia o
crocitar de um corvo? Inclinado para frente, ele ignora o olhar acusador e retira
as mãos dos bolsos, desejando que suas unhas estivessem limpas. O homem não tem
mais aquela camada de pelos para protegê-lo do frio, e a lufada de ar fresco
que penetra em seus ossos o faz enrijecer, quase como se mergulhasse em uma
piscina de gelo. Nu como em seu nascimento, ele não sabe onde foram parar suas
roupas, mas ninguém consegue vê-lo perambulando entre os arbustos da cidade
apagada. Ele vê moças estrangeiras conversando com homens perigosos, as quais
jazem em lençóis mortos antes do amanhecer, pois seus lábios vermelhos também atraem
predadores. O caminho está forrado com árvores, ele sente a selvagem respiração
do vento, enquanto uma pequena folha escova seu ombro e reflete a sombra dos
raios da lua em suas transbordantes recordações, memórias que chegam como um
murmúrio do passado e invadem sua visão, porém como a vidraça de uma janela, ele fragmenta seus pensamentos, apenas ouvindo os passos daquelas pessoas
ressonando na estrada. As estrelas se tornam brilhos estranhos na escuridão, e
seu instinto sofre intensivamente, vendo sombras em movimento ao longo dos
gritos de lares destruídos, uma obscena ruptura do silêncio da meia-noite, onde
o sangue goteja de lábios gananciosos e atrai mentes violentas, congelando
cadáveres com o pulso estrangulador da morte. O odor das trevas se mistura com
a segurança que as famílias acreditam ter, enquanto estremecem e seus pés
flutuam, dormindo sem ouvir os demônios que espreitam ao derredor e assistem
suas vidas patéticas. Perto de casa, o silêncio se torna uma voz lamuriosa,
ondas oscilantes emaranhando-se e agredindo sua mente, por onde a eternidade do
tempo está passando infinitamente nos confins da sua vida sem sentido. A
colisão parece programada, carregando suas cicatrizes como lágrimas brancas que
escorrem secas pela ventania. Lá, num espaço tragado pelo tédio, um amor
cego o espera com ramos dimensionais que atravessam sua liberdade. Com um
doloroso vazio, o homem galopa pela janela e sua esposa está deitada, suas
pálpebras piscam e se abrem lentamente, mas seu sorriso é como uma lâmpada
torta. Seu cheiro de flores o puxa como imã para cama, e ela se embala
gentilmente em seus braços, sem desconfiança, pois o amor é tudo que transborda de seus
lábios abertos. A brisa noturna e o olho da lua espreitam pela janela, mas a
voz da tentação sussurra em seu ouvido, vendo as sombras dos galhos se transmutarem
em diferentes formas como asas invisíveis na parede. O mundo lá fora se
desmorona e o silêncio é engolido pelos gemidos da sua amada, enquanto sua
tristeza é transformada em bondade.
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