As nuvens recaídas derramam uma chuva obscena desfazendo-se
numa pintura sem moldura suavemente camuflada em peles alheias. Num batimento
viciante e volúvel as ondas do céu encharcam meu corpo e ecoam a falsa esterilização
dos meus olhos vazios olhando para o nada, encarando uma perda com frios
arrepios sobre meu ego pulverizado e descendo uma correnteza interior enquanto
empalideço numa bolha dormente flutuando entre folhas que me acariciam como
dedos fantasmas fazendo cócegas e mordiscando. Os sons silenciosos me acalmam
em formas e cores mudando de humor como pupilas dilatando suas tonalidades,
emergindo em ventos que respiram minha vida escorregando num raso rio virgem sob
uma canção escrita, imaginando qual o gosto da cor que vagamente se espalha nas
coisas frágeis e puxa-me mais forte para esvaziar-se do sangue sujo como rosas
num vaso branco absorvendo a doença que mastiga meu crânio. As horas passam
devagar como um homem ferido nas linhas moventes do horizonte bebendo a água de
uma miragem e comendo cacto com a boca sangrando, os vermes abrem uma fenda em
sua barriga e um rosto pálido e cansado se move em risadas na sua mente, usando
máscaras feitas para esconder seus grandes olhos brilhantes alimentando as
mentiras de uma sanidade fraca. As luzes em seu olhar são como piscinas frescas
atraindo os para-sóis gastos de um sol gelado e escurecido, como uma gelatinosa saliva
derramando sobre sua língua coisas indizíveis, ele armazena o
calor e o desejo de uma dor-prisma queimando suas narinas e derretendo seus
lábios encobertos de cinzas enquanto a carcaça da sua personalidade muda é levada
pela poeira dos seus sonhos congelados na realidade. É assim que
rangendo os dentes e cuspindo uma avalanche de adrenalina, mais uma vez eu
fecho meus olhos, mas a membrana fina não pode encobrir a marca que me
confunde, fingindo não ver os raios de prata dançando no crescente frio que
flutua e perfuma o ar – o limbo que costumava ser meu interior e aquecia minha
respiração opressiva – em fragmentos de um flácido e cintilante vislumbre dos
meus ossos cansados de viver entre sombras emitindo minha melancolia,
despertando todos os dias como folhas em pedaços através de um vidro
cor-de-rosa mergulhado dentro da minha carne em mil nervos abrindo fissuras com
alfinetes espetados. Abandonado em uma consciência imóvel, as trevas preenchem
meu olhar no alvorecer das estações, centenas de pensamentos sendo esquecidos e
sinais perdendo seus significados, sem lembrar-se de onde estou nem da vida que
passou diante dos meus olhos, descobrindo o quão pouco eu realizei por todos os
meus planos negados e sofridos nas nuances de um segredo guardado em minhas
recordações. A todos os meus amigos eu digo, essas são as últimas palavras que
irei dizer e elas irão me libertar: vocês sabem, quem já está dormindo não
sente mais dor. Então se algum dia vocês leem isto fiquem sabendo que eu
gostaria de estar com todos vocês, mas meu corpo se foi, os meus cabelos se
dissolveram nos ventos frios e o meu cheiro se espalhou pelo mar das almas falidas,
a minha voz atormenta os camponeses para que se ergam contra os grandes
engajadores que louvam a arquitetura da agressão e o meu olhar observa-os no
manto negro da noite com o poder de um vazio resultante, sentindo o que as
pessoas carregam em volta de seus ombros como cargas pesadas de carenagem, e no coração a dor agoniante que se intensifica ao ver todos
aqueles demônios bebendo e dançando, eles cultuam e brindam ao senhor da noite enquanto
seus corpos desalmados servem de banquete, exibindo pontualmente que é tarde
demais para a humanidade, pois a calmaria apenas faz com que o agressor fique mais
agressivo e somente o terror e a feiura revelam o que a morte realmente
significa.