Nos poucos dias que passam os pequenos traços de
memória fantasmagórica ainda se atrevem a invadir meu breve pensamento. Quando
entrego meus olhos à luz do céu profundo ou às sombras de árvores verdes e
castanhas, o que sinto é ávido perante todas as coisas que me transformaram
naquilo que sou, embora a verdade seja indiferente a essas flutuantes sensações
de atravessar linhas e mais linhas para encontrar uma resposta e de nada
servir, pois palavras são vento. Ao menos uma noite seria o bastante para sentir
aquela presença fria como gelo, os olhos como chamas verdes e a voz a mais doce
canção dos templos da lua. A visão que trago são das brancas e rosadas pérolas espalhadas
por sua pele como nuvens de um céu esquecido. O seu perdão tornou-se para
mim como o sol que ilumina as tardes de fevereiro, como a clara palidez da lua que ao
longe manifesta as lembranças que carrego. Eu poderia dizer que essa obsessão
diabólica e destemível de chegar ao seu encontro e coagir com os seres
espirituais para sentir o cheiro da noite, o teu cheiro, o puro aroma dos
encantos de uma donzela virgem... faria de mim como trevas ao meio-dia, mas as
vezes o que digo parece tão confuso, sendo o oposto do que você entende como deixar
de nadar em um rio e se afogar ou como saber voar quando não possui asas. Desde
que meus dedos tocaram-te os lábios, sua boca se fechou, quando minha sombra
tampou-te a visão, seus olhos cegaram. Seria eu como uma criança perdida na
escuridão e amamentada pela mãe dos demônios, como um espírito atormentado pela
canção muda de uma estrela vinda do desconhecido? Como as chamas que te
consomem ou os demônios que perseguem a sua alma? Oh, teme que sou guiado por
espíritos imundos para conquistar seu coração? Não pense isso de mim, enxergue
o ser humano que sou: o homem que descansa durante o dia por que a madrugada o
chama. Que se perde em pensamentos abstratos quando seus sonhos são vazios e
seus objetivos uma estrada sem rumo. Que descobre fantasias e nunca acorda na realidade, por que
o sono mais profundo é aquele que deixamos de sonhar. Sou o homem que arrancou
os próprios olhos para que ninguém se sentisse seguro ao meu lado. O deus do meu universo
interior, mas que sabe que há outro me vigiando nas sombras.